sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O último e o primeiro escrito do ano

A mão, pesada, sobre a folha, rabiscava algumas palavras. Era uma carta. Uma carta de despedida. Um testamento. Deixava de herança a memória. Os cabelos brancos que caíam sobre os ombros, muitas vezes, impediam a visão de coisas belas. Muito velho, ainda tinha forças para levantar o lápis e deslizá-lo sobre o papel. Vivia sozinho em seu mundo. Um mundo real, com toques de fantasia. O último escrito do ano era sua última oportunidade de expor o que sentia naquele momento. A virada do ano nada mais era que um evento como a virada de um dia ou a virada de uma página. Não via sentido naquela algazarra que se transformara a passagem do dia 31 para o dia 1º. Percebeu que já não era o último dia do ano. Suas palavras caminharam pelo papel na virada do ano e o ponto final foi registrado agora, aqui, no primeiro dia do ano. Feliz ano novo.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Recesso P(r)a(r)lamentar

Este blogue entra em recesso a partir de hoje. Motivos? São tantos! Estou tentando disciplinar a escrita para trazer, enfim, um trabalho consistente e, se possível, impresso. Resumindo, trata-se de um livro. Como no lado profissional a situação não anda muito boa, vou investir no que me dá prazer. Fiquei aqui remoendo pensamentos e decisivo o meu afastamento da rede por um tempo. O verbo disciplinar é muito disso que estou procurando. Vou tentar diminuir a leitura de livros, para não interferir no meu projeto. Estou acabando uma leitura "profissional" e política - "Greve na Fábrica", de Robert Linhart - e os próximos agendados são na área de ficção. Quem sabe venha uma inspiração daí. Saudações. E até breve.

sábado, 20 de novembro de 2010

Livre Livro Aberto

Eu livro
Tu lês
Ele lelé da cuca
Nós livreiros
Vós, avós, livrais
Eles livram, Habeas?
Corpus, nu.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Individualista Possessivo

Eu. Meu. Meu Deus. Eu, Deus.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Um pouco de Ouro Preto

Florzinha amarela
Na soleira da porta
Como um livro aberto
Num dia fechado
Pela neblina
É um raio de sol
Em menor escala.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O broche

Três pedrinhas dispostas numa estrutura de metal brilharam em plena manhã nublada, um achado no chão. Seria uma senha? Seria uma mudança de rumo? Subi a montanha em busca de sossego. Duas linhas de ônibus depois, estava em frente a uma casa de loucos. Não havia vagas. Mas eu, louco de pedra, não podia desistir. Precisava de sossego, de descanso. Os nervos à flor da pele também precisam de tratamento. Uma academia para os nervos. Procurei uma segunda clínica. Também não havia vagas. Lotação esgotada. E se eu procurasse um cambista? Inútil. Na terceira casa de loucos, já descendo a montanha, previ o inevitável. Sem vagas. A quarta, talvez, me recebesse de braços abertos. Afinal, eu poderia ser o elo perdido da psiquiatria mineira. Um lelé-da-cuca-legal. Um louco de pedras brilhantes. Também não. Lotação esgotada. Sem agendamento, era impossível a internação. Como? Prevendo uma alucinação, uma crise? "Agenda para mim uma internação daqui a duas semanas, pois eu vou surtar?" Quem sabe se eu pregasse aquele broche na lapela invisível da minha camiseta vermelha, as portas se abrissem para mim. Já era tarde e não obtive êxito na internação. São dois dias longe do trabalho. São dois dias longe da lucidez. Ela vai e vem, de acordo com o humor, bem ou mal. Como era aquela frase? De médido e louco todo mundo tem um pouco? Ou era das famílias que falavam? De médico e louco toda família tem um pouco? Felizmente, eu tenho duas pessoas forte na família. Infelizmente, essas duas pessoas não podem dizer o mesmo. Estou tentando escrever algo inteligível, longe de ser um testamento, pois não cheguei a esse ponto, meu amigo. Um breve relato das agruras de um louco sem tratamento, mas com muito amor pela família. Os remédios já não tratam mais, apenas incomodam. Eu preciso me libertar das drogas, do vício, da alucinação. Eu preciso de uma vaga num hospício, para descansar de outro hospício, o ambiente de trabalho. Lá, no trabalho, eu faço algumas atividades repetitivas, eu repito para mim mesmo: você vai conseguir coisa melhor. Não odeio meu trabalho. Também não o amo. Em respeito às duas pessoas sãs de minha família é que me submeto ao capitalismo, ao ser explorado em troca de capital, de um capital que anda curto, como aquele cobertor de pobre. Um pagamento aqui, uma despesa ali. É preciso muito jogo de cintura nessa roda-viva. Como eu sempre tive essa cintura quadrada, tá difícil rebolar para angariar fundos. Melhor mesmo é internar, pois já estou cansado de exteriorizar essa deficiência. Quem sabe quando o verão chegar, e os demais loucos saírem dos sanatórios, eu consiga lugar naqueles palcos de lotação esgotada. Eu não gosto de sol, mas tem louco que gosta. Cada um com suas atribulações. Eu prefiro um pouco de sombra. Não estou em forma para me expor ao verão. Ainda estou na primavera. Já liguei para o doutor informando o problema. Ele me mandou procurar outro. "Outro problema, doutor?" "Não. Outro médico. Estou entrevistando candidatos ao seu emprego. São milhares este ano." "Doutor, só lamento. Por que não pede um afastamento para tratar os nervos?" Não sei o que aconteceu, mas do outro lado da linha só ouvi aquele singelo tum, tum, tum.

sábado, 30 de outubro de 2010

"Clóvis, aonde estão os óculos?
Clóvis, aonde estão os óculos?
Quem mandou você bulir aí?"
(SUA MÃE)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Morto por uma bola de papel

A cena foi rápida. No meio da multidão, o político acenava para os comparsas que o cercavam. Um círculo dentro da massa. A massa era contrária à presença do político. De repente, no ar, uma mancha branca lançada entra no círculo. O político leva uma das mãos à cabeça. A câmera focaliza a cabeça. A mão do político não se mexe. Permanece sobre a cabeça. O círculo se movimenta no meio da massa tentando chegar até uma loja. O dono da loja, vendo o político e sua comitiva tentando entrar em seu estabelecimento, junta os funcionários e forma um cordão. "Aqui, não! Já para fora!" Escorraçado, o político e seus comparsas se movimentam até a próxima loja aberta. Novamente, a entrada é negada. "Estou morto." E estava mesmo. A campanha do político acabara ali. Não, para ser preciso, não foi ali. A campanha dele acabou no hospital. Após uma bateria de exames, o veredito: "O objeto que atingiu a cabeça do paciente causou vários problemas." Antes que terminasse de falar, o médico foi questionado. "Quais problemas?" Revisando as anotações que fizera, o médico definiu um problema: "Morte eleitoral." Semana que vem é o velório do político.

domingo, 17 de outubro de 2010

Ponto morto na calçada

- Amor, você tem certeza que estacionou direito? O carro tá meio torto.
- Mulher, o que você entende de estacionar?
- Eu só estou falando que o carro está meio torto.
- Tá, tá, tá! Quando você descer, ele desentorta.
- Olha, Miguel, a próxima vez que me chamar de gorda...
- O que você vai fazer? Entrar numa academia?
Ao descer, a mulher, ainda magoada com o comentário do marido, pisou num degrau desconhecido. Ainda reclamou:
- Mas que rua esburacada!
- Viu! Não disse que a culpa não era minha? É da rua, mulher!
Eles juntaram os meninos e caminharam até a igreja, onde já começara o casamento. O menino mais curioso, o menor deles, olhando para trás, puxou o vestido da mãe. Queria dizer-lhe alguma coisa, mas a mãe, preocupada com a cerimônia, não lhe deu atenção. O menino, durante o casamento, ficou com aquela imagem na cabeça: um corpo na calçada, debaixo do carro do pai. A mãe, possivelmente, ao descer do carro pisara na cabeça do morto, o tal "degrau", o tal "buraco".

"O corte", de Costa-Gravas

Acabei de assistir ao filme "O corte", do diretor Costa-Gravas. Ao contrário das ações que retrato de um matados há alguns meses, a personagem principal do filme, um engenheiro desempregado da indústria do papel, resolve assassinar possíveis concorrentes. Para isso, aluga uma caixa postal e faz uma anúncio falso de seleção de engenheiros para a área em que trabalha. Com isso pretende analisar o melhores currículos e "sumir" com os engenheiros. Humor negro? Talvez, mas parece mais uma crítica ao capitalismo que joga com as vidas das pessoas. Ao contrário do matador de Encontros Marginais, o assassino de "O corte" apresenta motivos capitalistas para matar. Ao longo do filme, a publicidade em cartazes e em propagandas móveis são substituídas por imagens de mulheres semi-nuas, jóias e outros artigos de luxo. Mais uma crítica ao capitalismo, pois essas imagens sempre aparecem quando o assassino precisa se justificar.

sábado, 9 de outubro de 2010

O pregador de mentiras

O homem estava cansado e sedento. Trabalhara durante o sábado nas obras do condomínio residencial no alto da montanha. Descera, agora, no fim da tarde, voltando para casa. Caminhando pelo centro da cidade, vislumbrou o palácio religioso. Ostentando uma fachada luxuosa, a igreja possuía dezenas de portas e centenas de janelas. O homem resolveu entrar no estabelecimento comercial. "Quem sabe tem um bebedouro." Subiu os degraus e foi recebido por um homem-armário. Pegou um jornal com as orações do dia e os classificados abençoados. Escolheu um lugar para sentar e aguardou. A próxima sessão de descarrego começaria dentro de vinte minutos. Buscou com os olhos uma placa que informasse a localização do bebedouro. Não localizou nenhuma. Resolveu se aproximar de um fiel. Começou, então, um diálogo digno de pessoas humildes. "Esse lugar é muito bonito." A figura de quem se aproximou respondeu sem muito interesse. "É verdade. Muito bonito." Vendo que a conversa não tinha futuro, foi logo para a questão que o perseguia desde que estava na rua. "Hum, sabe, antes de começar a apresentação..." O outro arregalou os olhos para ele. Pensou rapidamente no que dissera. Precisava entender a surpresa. Entendeu logo o que havia surpreendido o fiel. "Digo, o culto, sabe? Antes de começar, acho que vou beber um pouco de água. Você sabe onde fica o bebedouro?" O fiel desfez a cara de surpresa, baixou os olhos para o folheto das orações e indicou a direção. "Que bom. Eu já estava seco. Meus lábios estavam pregados de tanta sede", pensou o homem. Levantou-se e caminhou até o bebedouro. Chegando lá encontrou outro homem-armário. Imaginou. "Esses caras se vestem como seguranças. Acho que vou beber água e cair fora daqui." Sorveu o jato de água que saia do equipamento. Estava bem gelada. Quando começou a se aproximar da porta de saída encontrou outro homem-armário. Aquilo o intimidou e o fez mudar de ideia. Ficaria para ver a apresentação, digo, o culto. Sentou-se próximo da porta de saída e fechou os olhos. Era preciso descansar. Afinal, levantou muitas paredes naquele sábado. De repente, quando abriu os olhos, percebeu que não era mais uma das poucos testemunhas ali. Estava cercado de fiéis. Homens, mulheres, crianças, velhos, velhas e homens-armário. No púlpito, uma figura de terno iniciava sua apresentação, ou culto, seja lá o que fosse aquilo. As pessoas vibravam com as palavras daquele sujeito. O homem começou a olhar as pessoas que o cercavam. Algumas estavam realmente muito emocionadas, outras pareciam estar em transe. Aquilo começou a assustá-lo. O sujeito do púlpito interrompeu o show-culto. Começou, então, a suplicar doações em dinheiro. O homem, liso como todo trabalhador honesto, entendeu que já estava na hora de sair dali. Tentou levantar, mas foi impedido pelas pessoas que o ladeavam. Como dizia, elas estavam em transe e ele temou acordar os sonâmbulos. Incrível, alguns pareciam zumbis. Dormiam de olhos abertos e gritavam. Seu coração começou a bater mais rápido. Foi então que aquele homem do palco gritou e apontou o dedo em sua direção. "Basta!", gritou. Todos interromperam a catarse coletiva. Ele levantou-se e perguntou: - Quem, aqui, tem dinheiro para usar ternos tão caros como esses homens da igreja? Ninguém respondeu. Perguntou novamente: - Que, aqui, tem dinheiro suficiente para comprar um carro ou uma casa como esses homes da igreja? Ninguém respondeu. Antes que emitisse uma nova pergunta, o homem foi cercado pelos homens-armário e o sujeito lá do palcou gritou. "Irmãos, esse homem está com o diabo no corpo!" E todos gritaram em direção a ele. Aconteceria um linchamento, pensou o homem. "Esse povo vai me linchar." Os homens-armário o pegaram pelos braços e o levaram ao palco. O sujeito com o microfone começou a gritar. "Sai desse corpo que não te pertence. Sai capeta!" O homem entrou na jogada, afinal precisava se safar daquela situação. Começou a dançar. O sujeito do microfone pegou em sua cabeça e mandou mais uma vez. "Sai desse corpo, capeta!". O homem caiu no chão, ajoelhado. Depois deitou-se no chão. Levantou. Os fiéis aplaudiram. O sujeito do microfone começou a sambar no palco. Os homens-armário o levaram para trás do palco. O homem recebeu uma nota de cinquenta reais. Por fim, ele perguntou: - Se vocês precisarem novamente dos meus serviços, estou a disposição. Uma mulher de saia longa e cabelos amarrados aproximou-se dele e sussurrou em seu ouvido. "Nunca mais apareça aqui." Ele olhou para ela e para os homens-armário que a acompanhavam com um misto de surpresa e terror. Saiu do palácio religioso pela porta dos fundos e nunca mais foi visto naquele templo, naquela obra, nem em sua casa.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Os homens limpavam paredes

Garis verticais, eles limpavam paredes. Varriam os tijolos com auxílio de água. Limpavam a vista dos transeuntes dos cartazes da política passada. Erguiam escadas e começavam o serviço, calados. Em troca de dinheiro, limpavam a sujeira dos outros, que os outros fizeram. "Pelo menos não limpo latrinas, sabe?, de fezes." Começavam cedo e terminavam tarde. Trabalho temporário. Depois da empreitada, olho da rua. "Melhor que nada." Quando lhes disse que fazia campanha contra a sujeira dos políticos, me olharam torto. "Ainda bem que o senhor não é bem sucedido." Perguntados se votavam, respondiam calados. Se questionados novamente, diziam em tom divino. "Pra quê?" Os homens limpavam paredes e outros homens erguiam paredes, divisórias entre o mundo real e o eleitoral.

Ontem eu abri os olhos

Parado na estação do metrô, recostado no banco de pouco uso, abri os olhos para enxergar as horas. Luz fraca, sem programa agendado, o relógio estava com os ponteiros parados, estagnados. Uma vontade de não fazer nada. Um trem atrás do outro e a posição, a mesma. De repente, soou uma sirene. As luzes se apagaram, para sempre.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Nota breve sobre a greve

Morreu nesta sexta-feira, dia 1º, em greve de fome, o trabalhador que pedia o fim da corrupção e da desigualdade social. Ele tinha 33 anos e pesava no final de sua vida 33 quilos. Ele foi cremado e jogado do alto da Serra do Curral. Não deixou esposa, nem filhos.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Um copo de cachaça

Ei, chegado! Dá uma grana aí? Não. Muito obrigado. Não quero comer, não. É prum copo de cachaça. Tô de barriga vazia, sim, mas não é o caso. Eu preciso é de beber. Um real, chegado! Não vai te fazer falta! Eu? Não, senhor! Trabalho, não! É a conjuntura, sabe? O quê? Como é que eu sei o que é conjuntura? Eu não sei, não. É que falam tanto na tevê da minha tia que o problema do desemprego é por causa da conjuntura que eu gravei isso aqui na cabeça. Não. Minha tinha não me deixa beber. Ela é crente, saca? Ela ainda acha que eu sou virgem. Eu bati um lero com ela outro dia e ela me falou que quando eu casar eu vou poder ter relações sexuais com a minha esposa. Só depois de casar. Eu? Não. Eu não sou virgem mais. Minha tia? Não sabe. Mas quando ela começa falar dessas coisas eu só balanço a cabeça dizendo sim. O dia que ela desconfiar que eu não sou mais virgem ela me bota pra fora da casa dela. Então, chegado, vai me dar uma grana pra eu beber? Contei a história da minha vida pra tu. Deve valer alguma coisa. Não vai nem precisar assistir a novela da oito depois disso.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

As casas de loucos estão lotadas

Ingressos esgotados. As casas de loucos estão lotadas. Não adianta subir a montanha ou descer à planície. As casas de loucos estão lotadas.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O mercado

Uns tremores surgiram na última madrugada. Madrugada abafada depois da chuva. Arrumou-se e saiu pela porta. Destino: o mercado. Olhava os produtos espalhados no chão, em cima das lonas pretas. Havia de tudo, coloridas, brancas, grandes, pequenas. Uma bebida? Impossível. Não conseguiria sobreviver a mais uma bebedeira. Precisava manter as mãos em sincronia. Dois dias depois, tem jogo no bilhar. Dinheiro alto. Precisava de algo leve e eficiente. Precisava retornar para a cama e dormir tranquilamente. Acabou desmaiando ali mesmo. Sentiu a carteira sair de seu bolso. Lutou para mantê-la, mas recebeu um golpe na cabeça e um chute na costelas. Virou-se e tentou descobrir a face do agressor. Recebeu outro golpe. Começou a expelir um gosto de sangue pela boca. O corpo não respondia. Percebeu o vulto do agressor partir. Em questão de segundos o vulto voltou. Dinheiro de malandro não anda na carteira. Recobrou a consciência. A luta agora seria de igual para igual. Simulou estar grogue ainda pelos golpes. Quando o sujeito chutou-o mais uma vez, segurou a respiração. Um golpe mal dado. O agressor abaixou-se para revistá-lo e levou uma facada na barriga. Agora, estavam em posições inversas. Levantara-se rapidamente e apreciou o outro no chão. Revirou os bolsos do infeliz e tirou seus sapatos. Pegou o dinheiro e comprou o que queria e voltou para casa. Teve muita sorte. Corpo fechado? Depende da sua crença.

sábado, 25 de setembro de 2010

Bonfim

Vivia sobre um ferro-velho. Morreu de tétano. Bonfim. Belo Horizonte. Minas Gerais.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Uma caneta para escrever... ou para matar.

Ele está ali, na esquina, esperando você aparecer. Vai sorrir pra você. Vai contar uma história. Vai dizer que o pai tá doente e que a mãe precisa operar. Quando você abrir a carteira, ele vai lhe roubar. Se você reagir, ele vai lhe matar. Se você correr, ele vai atrás de você até... até lhe encontrar. E ele vai cobrar os juros da corrida, como se taxista fosse. Mas não se perturbe, meu caro. Para isso, eu lhe digo: - Uma caneta sem tampa é uma ótima arma de defesa. Bem manejada pode causar um estrago em seu algoz e transformá-lo em sua vítima. Uma caneta, por exemplo, passa num detector de metais. Uma caneta não aparenta perigo para 9 entre 10 pessoas, pois é certo que 9 entre 10 pessoas não usam caneta, nunca usaram ou nunca usarão. De que modo? Do modo como estamos acostumados a usá-la. Sim. Nós. Não se esqueça de me agradecer depois que passar por essa experiência. Eu vou lhe contar uma história. Um dia, saindo de um bar da região da rodoviária, fui abordado por um infeliz. Ele pediu um cigarro. Coisa simples. Eu até daria um ao infeliz não fosse o sujeito manter no bolso da camisa um maço de cigarro fechado. Sabe o que é isso? A senha. Uma merda pode acontecer. E o que a gente faz? Isso. Saca a caneta do bolso lentamente. Desfazemo-nos da tampa com o polegar e seguramos a caneta junto à perna ou ao bolso de trás da calça. Um sorriso também é muito útil nessas horas. Desarma temporariamente o agressor. Temporariamente, porque ele vai fazer aquilo que você está pensando. Aquilo que você precisa evitar. Não esqueça de uma coisa: o golpe deve ser rápido e eficaz. Isso torna a fuga mais fácil. Não chama a atenção de algum curioso. A rua tem muitos curiosos. Algumas vezes é uma velhinha, outras vezes é uma criança. Se você for visto no uso de sua caneta deve pensar bastante se valhe a pena ou não deixar testemunhas. Na maioria dos casos, as testemunhas podem ser descartadas com um empurrão para alguma via de muito tráfego. É espalhafatoso, eu sei, mas às vezes é necessário. Se preferir, use uma caneta vermelha. Se o questionarem sobre o que seria sangue, você diz que foi a carga que estourou.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A morte do padeiro

Depois de dormir 23 horas e permanecer acordado pelas últimas 9 horas, ele foi à padaria. Não havia pão, só uma padaria jogada às traças, aos fungos. O padeiro puxou uma baguete para defender-se, mas o estranho foi mais rápido e acertou-o com um pão careca mofado. A morte foi lenta. Nunca mais, o padeiro vendeu um pão naquela cidade. Os consumidores aplaudiram a iniciativa do estranho, mas sua imagem não conseguiu ser registrada pelas câmeras das equipes de televisão que foram ao local. Nem do circuito interno de tevê da paderia, conseguiram alguma prova do incidente. Alguém esquecera ligar o gravador de imagens. A morte profissional, muitas vezes, leva à morte física. O padeiro mudou de profissão, virou cabeleireiro. Anda com um caderno de recortes debaixo do braço. Entre fotos de personalidades, das quais copia os cortes de cabelo, alguns registros sobre aquele dia. Ele sobreviveu.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Fast-Food, Slow Shit

Os dias andavam muito parados. Nenhum vagabundo para roubar. Você diria: "Mas tem muito otário por aí!". Realmente, isso não falta em Belo Horizonte. Só que não posso sair por aí e dar uns golpes em qualquer um. Tem muito trabalhador aí, com conta para pagar, com filho pra nascer, com mãe doente no hospital. E o que eu faço nessas horas? Seleção, naturalmente. Eu fico de mutuca nas esquinas. Outro dia, por exemplo, eu saí da pastelaria do Chico. Os melhores pastéis do Centro. Eu não falo isso pro Chico porque ele vai querer aumentar o preço do conjunto de pastéis com caldo de cana. Então, saindo de lá, ainda tirando aquele óleo do beiço, um playboy me deu uma cotovelada. O sujeito, de mochila nas costas e óculos escuros, olhou pra trás e soltou um: "Olha por onde anda, filhodaputa!". Surpreendente isso! Ele tirou a frase da minha boca. Se eu não tivesse ainda limpando aquele beiço besuntado, eu tinha sido mais rápido do que ele. Mas não foi o palavrão que me mordeu, foi o sorrisinho de canto de boca que ele soltou. Aquilo ligou o meu sistema e eu fui atrás dele. Desceu a Amazonas e foi dar lá naquele fast-food da Praça Sete. Esperei o infeliz lendo os jornais da banca da Carijós. Quando o malandro saiu do estabelecimento com os pacotinhos de hambúrguer, eu fingi abaixar para amarrar o sapato e dei um furo no pé dele. Ele gritou, mas eu levantei rápido calando o infeliz e mandando o recado com lábio sujo ainda do pastel: "Da próxima vez, meu chegado, não vai adivinhando a profissão da minha falecida mãe em voz alta, não. Passa aqui esse negócio!" Deixei o moleque parado lá, na surdina. Uma pena eu furar o pé dele com uma tesoura. Aquele tênis ia ficar legal no meu pé. O sujeito nem experimentou o bagulho com fritas. Como é que se diz? "Fast-food, slow shit."

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O marginal

Um sujo na praça me parou pedindo dinheiro. Um cão se coçava e mordia o corpo em busca de pulgas. Mexi nos bolsos e não encontrei nenhuma moeda. Não ia abrir minha carteira ali naquela praça. Nem morto. Balancei a cabeça de forma negativa. O sujo insistiu. Eu vasculhei os bolsos de trás e nada. Balancei novamente a cabeça de forma negativa. Ele insistiu novamente. Olhou para minha carteira, a qual manuseei à sua frente enquanto vasculhava os bolsos traseiros de minha calça. Eu balancei a cabeça e ele não gostou daquela última balançada. De repente, senti um bafo quente no pescoço e quando me virei vi outro sujo atrás de mim. No giro que eu dei, o primeiro pegou minha carteira e a abriu rapidamente. Não havia dinheiro, para o seu descontentamento. Não sei se era por causa da cachaça, ou por causa do zero à esquerda que me mostrei por não apresentar nem uma nota de dois, mas comecei a pensar em fugir dali. Não costumo fazer isso. Mas, num ambiente como aquele, não é bom arriscar nossa honra. O sujo do bafo quente sacou uma faca de descascar laranjas. Como não vi nenhuma por ali, comecei a me preocupar. O primeiro sujo jogou minha carteira no chão e voaram vários papéis na calçada. Um deles se destacou. Era um cartão branco com letras vermelhas. Um às de copas ornava o canto superior esquerdo do cartão. Pelo visto, aquele sujo não era analfabeto, pois além do símbolo do carteado, ele reconheceu o que estava escrito. Vi o suor surgir em sua face. Os olhos dele começaram a pulsar e ficaram vermelhos. Logo, logo, um grito sairia de sua garganta. Antes que pronunciasse aquelas palavras, eu avancei em sua direção, saltando o meu braço direito em seu pescoço. "João Carlos, matador." O outro sujo tentou correr, mas o giro de perna que eu dei foi o suficiente para impedir o seu progresso em direção à rua. No meio da praça eu terminei o meu serviço. Não queria mais fazer aquilo, mas fui impelido a matá-los. Trabalho gratuito. Enquanto eu arrumava os papeis em minha carteira, o cão ainda se coçava e mordia o próprio couro em busca de pulgas.

domingo, 5 de setembro de 2010

Pobre Opróbrio

Desonra é seu sobrenome. Opróbrio Desonra, o seu nome. Rico de vícios. Pobre de ideais. Vendido na feira ao lado da laranja e do abacaxi. Alçado às capas de jornais de final de semana. Opróbrio Desonra tenta ganhar um troco com a venda de artigos e colunas. E sua pequena auto-biografia escrita pela esposa, socialite nas horas vagas. Tão vagas que tornaram-se longas jornadas de trabalho. Sai às nove da manhã e retorna no dia seguinte. Bate cartão após cartão. Vende sorrisos e o corpo para içar o marido a fato mais quente da semana. Relações públicas. Assessora de imprensa. Vende o bacalhau na semana santa e nas semanas seguintes até o Natal. Pobre Opóbrio. Desonra é seu sobrenome. Sua mulher não tem nome, mas está na mídia todo santo dia e em dias não santos também.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Diálogos perdidos no vento

Direito de falar direito
- Ei, você matou ontem...
- Matei, sim. E se abrir o bico, te apago!
- ... a aula de Direito Penal.

O último diálogo
- Aonde você vai?
- A sua pergunta está errada.
- Por quê?
- Deveria ser: "Quando você volta?"

Pais separados
- Nó, véi! Ontem eu peguei uma mina...
- Eu sei, moleque. Da próxima vez, respeita o horário que eu defini e traz minha filha às 10 horas da noite.
- Foi mal aí...
- Foi, sim. De outro modo, eu pego a sua mãe sábado no cabeleireiro e faço um irmão pra você. Vai querer um irmão dividindo a herança que o teu pai deixou?
- Nuss... tá me zoando?
- Dez horas?
- Dez horas!

sábado, 28 de agosto de 2010

Uma praga, esses políticos.

Um caminhar vagaroso e sufocante. Pelo ar seco da cidade e pela poluição decrépita dos anúncios eleitorais, percorri alguns metros sem tropeçar no pedido de um voto. Olhos falsos, olhos de papel. Uma vontade de lançar meu ultimato pela limpeza dos muros e fachadas. Calçadas impedidas por cavaletes políticos. Números e mais números. Economia nas propostas. Uma praga nos olhos. Uma praga na consciência. O candidato das minorias. O candidato dos trabalhadores. O candidato do povo. O candidato dos idosos. O candidato da juventude. O candidato. Um sujeito que polui até paredes. Vamos retocar suas imagens no próximo dia, como culture jammers, trazer para a frente do cartaz o que se enconde atrás da cola, atrás dos sorrisos falsos de falsos profetas. A política partidária deve muito à política cidadã. Enquanto a última vive com parcos recursos, a primeira provoca o nojo da sociedade com sua ignomínia.

sábado, 21 de agosto de 2010

Olho por Olho

Um golpe no ar. Uma morte lenta. Olho por olho, diziam. Não existe olho por olho, pois o olho do que mata só se fecha pelo ato de outro olho, gerando um círculo vicioso. Ele matou um sujeito e o primo deste vingou com a morte daquele. Um terceiro matou o primo e quando se viu não haviam mais laços consaguíneos nas revanches. A cidade era pequena e as famílias em disputa eram menores ainda. Ao final da disputa, a cidade não era mais cidade, apenas um ponto no mapa eleitoral de alguns descendentes que fugiram da seca. Hoje disputam votos na capital e dividem a mesma mesa na sala do cafezinho da Assembléia Legislativa. Pensam em casar os filhos e formar uma nova oligarquia no Estado.

sábado, 14 de agosto de 2010

Um minuto de silêncio

Outro dia brincava com um menino desconhecido.
Outro dia brincava como um menino desconhecido.
Ele crescia no ventre de minha esposa.
Não sabia se menino fosse ou se menina era.
Mas a certeza de uma vida nascendo trazia alegria.
Mais alegria a nossas vidas.
Um minuto de silêncio, pois o menino - ou menina - foi-se sem ter vindo.
Um anjo, uma estrela no céu.
Iluminou nossos dias com sua presença para sempre.

sábado, 7 de agosto de 2010

Motivos para Mudar

Apesar do caráter ficcional de todos os textos publicados neste blogue, gostaria de analisar o meu último registro. Algumas pessoas consideram os motivos apresentados suficientes para matar, outras pessoas pessoas acham que são suficientes para morrer e outras, mais sábias, consideram tais acontecimentos - adultério, traição, desemprego e despejo - motivos para mudar. Somos instigados a tomar outros caminhos na vida a partir de rupturas em nossas rotinas. Existem pessoas que resolvem romper com a sociedade. São essas pessoas que busco retratar neste blogue.

Motivos para Matar

Ele saiu à rua com vários motivos para matar. O patrão o despediu, a mulher o traiu, o irmão o roubou, o senhorio o despejou. Como toda pessoa sem experiência no assunto, utilizou alguns produtos disponíveis no mercado para "criar coragem", alguns legais e outros ilegais: bebidas e drogas. O resultado seria o mesmo, não importava a origem da coragem. O patrão seria o último, pois já era domingo e não sabia onde o encontrá-lo nos dias de folga. A mulher foi a primeira. Foi à casa do amante, que, por coincidência, era o irmão. Resolveria dois problemas de uma vez. Bateu na porta e tapou o olho mágico. A última ação era desnecessária, pois seu irmão não costumava olhar antes para saber quem estava à porta. Já o avisara sobre esse deslize. "Qualquer dia um marginal entra na sua casa." Pelo ruído da chave, duas voltas dadas, notou que poderia se antecipar a qualquer movimento do irmão. Deu um tranco na porta e jogou-o longe. Já foi logo sacando uma pistola e dando uma passagem só de ida ao irmão. Olhou para os demais compartimentos da casa, à procura da esposa. Ouviu barulhos no quarto. "Aquela maldita! Transando durante o dia! Sempre regulou os horários comigo e estava transando durante o dia com o meu irmão!" Quando entrou no quarto viu a mulher tentando pular a janela. Disparou na perna direita da mulher. O tiro fez com que ela caísse para trás. Quando ela voltou a cabeça em sua direção, recebeu o tiro definitivo. Precisava encontrar agora o senhorio. "O puto deve estar naquela pocilga, cobrando o aluguel de mulheres solteiras." Chegou ao prédio e caminhou pelo corredor central do primeiro piso. Morara no último piso. Ali no primeiro era onde as mulheres solteiras costumavam morar. Ele fazia a ronda duas vezes por mês, pois cobrava aluguéis semanais das moças. Antes de chegar ao final do corredor viu uma porta se abrir e o senhorio saíndo com uma mão segurando a calça e a outra mão segurando o dinheiro. O olhar de surpresa do senhorio ao levantar a cabeça em direção à entrada do prédio foi o sinal de largada. "O que você está fazendo aqui? Já não o mandei embora do meu prédio, seu vagabundo?" Antes que essa última palavra fosse pronunciada, a garganta do senhorio se preencheu de sangue. Uma bala penetrou o meio de seu peito. O líquido começou a cair de sua boca, impossibilitando a articulação correta das palavras. A mão que segurava a calça se levantou para fechar o ferimento. A cena não era muito bonita. Um homem velho sem calça no corredor, exibindo uma cueca vermelha. Uma imagem grotesca. Algumas mulheres do primeiro piso abriram suas portas lentamente para ver o que se passava. Espionavam pelas frestas. Algumas exibiam um sorriso de redenção. Outras pareciam não acreditar no que viam. Por final ele mirou entre as pernas do senhorio e arrancou dele seu último instrumento de tortura de meninas inocentes. Deu a volta e fechou atrás de si mais um capítulo de sua história. Caminhou até o seu último local trabalho forma. Bateria o ponto uma última vez. Conversou com o vigia, amigo de longa data, que o deixou entrar no prédio no final de um domingo sangrento. Ele costumava dormir no trabalho algumas vezes. Por isso o vigia não estranhou nada. Na segunda-feira, pela manhã, acordou mais cedo que o costume. Lavou o rosto na pia do banheiro, passou a mão sobre os cabelos e ajeitou-os para trás. Arrumou a camisa, colocando-a para dentro da calça. Bochechou um pouco de água e cuspiu pela última vez naquela pia. Entrou na sala do chefe e o esperou sentado na cadeira confortável da qual o maldito costumava dar ordens e gritar metas metas absurdas. Às oito horas da manhã, a porta do escritório se abriu e um sujeito que costumava ser intolerante, ao ver uma arma apontada em sua direção, se mijou todo. Antes que pronunciasse qualquer choro ou fizesse qualquer promessa, fechou os olhos para sempre.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Medo, eu?

O posto de gasolina havia sido assaltado algumas vezes durante a noite. Trabalhava durante o dia e sempre ouvia as histórias dos funcionários sobre assaltantes mascarados descendo de motos e levando todo o dinheiro do caixa. Conversei com meu chefe duas vezes. Pretendia mudar de turno. Ele negou a mudança uma vez. Na segunda vez não mostrou resistência. Afinal, um dos funcionários da noite, após presenciar um assalto, pediu as contas e foi embora. Minha vida deixaria de ser monótona. Estaria no centro dos acontecimentos. Tranquei o cursinho noturno e me preparei para no dia seguinte assumir o serviço no caixa da loja de conveniências. O coração batia forte. As pernas tremiam quando fiquei sozinho na loja após a meia-noite. Não trocaria aquilo por nada. O sino da porta tocou. Era um cliente. Infelizmente não estava com máscara, nem com capacete. Comprou uma cerveja e foi embora. O sino tocou novamente. Um sujeito usando capacete veio direto até o caixa. Parecia que meu coração sairia pela boca. O sujeito tirou o capacete e perguntou se tinha lasanha. Eu indiquei a direção do refrigerador. Ele não entendeu. Eu apontei novamente para o refrigerador. Ele virou a cabeça para ver e, enquanto eu explicava a ordem de refrigeradores e produtos, ele sacou um revólver. "Passa o dinheiro, moleque! Rápido!" Era do jeito que eu pensava que seria. Ali, na minha frente, o cano do revólver. O cara era corajoso. Tava de cara limpa. Na gravação do circuito interno de tevê, só daria ele. As emissoras pediriam cópias. O sujeito era corajoso mesmo. Ficaria famoso! Bastava eu entregar o dinheiro para ele. Mas não foi o que eu fiz. Eu saquei o 22 do meu pai e matei o cara. Dois tiros, como o meu velho ensinara. Um na cabeça, outro no peito. O sujeito era corajoso, mas também era muito burro. "Medo, eu? Eu nasci para ser estrela!" Nem que seja do noticiário policial. O dono do posto me deu uma gratificação. A polícia tentou criar caso por causa da arma, mas, devido ao sucesso do vídeo na televisão, eu fiquei famoso e esqueceram de importunar. Uma semana depois, o meu patrão me deu um 45. "Meu filho, um produtor de televisão me falou que se você usar um calibre mais alto a imagem fica melhor."

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Trabalhador-Pingente

A vida é difícil. Todo dia de manhã ele vai trabalhar agarrado na porta do ônibus. Balança para lá, balança para cá. Todo dia é dia de suplício. E nem começou a trabalhar. É só o caminho para tortura. Quando chega ao destino de todo trabalhador, começa a atividade de forma maquinal. O sono não permite uma mudança no semblante. Mal alimentado, balançou por algumas horas naquele transporte coletivo. Um transporte desumano, em que seres humanos são tratados como animais que vão para o abate. Os animais pagam o transporte com a própria vida. O trabalhador paga o transporte com o bilhete de passagem e com as horas que perde de sua vida indo e vindo. No final do dia, esgotado, o trabalhador sofre novamente o sofrimento do início do dia. O sono é substituído pelo cansaço de uma jornada estafante. O caminho é feito de pé, em ambiente apertado. As mulheres e os idosos sofrem mais, mas a escala de sofrimento não deve ser aplicada como meio de comparação entre a dor e falta de perspectiva de uma viagem tranquila. Na cidade grande os longos trajetos entre a moradia e o trabalho não permitem uma atividade mais saudável como uma caminhada. O trânsito insano de veículos não permite também outra alternativa de transporte como a bicicleta. O ciclista é o mais fraco entre carros, ônibus, caminhões e motos. O trabalhador-pingente um dia se esvairá como uma gota d'água no deserto.

domingo, 1 de agosto de 2010

Ignorância mata

Em troca de umas poucas moedas, ele faria qualquer coisa: "Até matar, senhor." Era assim que se expressava. Como um escravo, como uma pessoa comum. Às vezes, dizia "doutor". Mesmo não sabendo a quem se aplicava tal expressão. Qualquer pessoa bem vestida, com uma imagem de poder, de hierarquia maior, era tratada como "senhor", como "senhora", como "doutor", como "doutora". Foram poucas mulheres a lhe oferecerem um "serviço" como aquele. Lembra-se de uma, muito tempo atrás. Era rica fazendeira. Jovem. Contratou-o para matar o marido, velho fazendeiro. Casaram-se para juntar os poderes das famílias no interior de Minas. Um dia, ao sair para contar o gado, o velho fazendeiro foi surpreendido por um "assaltante", o qual levou-lhe a vida e o relógio. Um sobrinho muito curioso, tempos depois, questionou a tia sobre o relógio que ele vira em sua gaveta. "Não é o relógio do tio?" Não. Você deve estar confundindo. Quase que ela o contratou para dar cabo do menino, mas não foi necessário. O garoto morreu ao contrair raiva depois de ser mordido por um dos cachorros da fazenda. Coincidência? A questão é que agora ele estava novamente diante de um novo trabalho. Um trabalho diferente. O sujeito que o abordou na calçada da rodoviária chegou todo humilde, oferencendo-lhe um café. Encostaram no balcão do bar e começaram a conversar aquela conversa que só duas pessoas entendem. Os que passavam por ali não faziam questão de saber também do que se tratata aquele contrato de prestação de serviços. Ele fingiu não ficar assustado com a proposta, afinal era a primeira vez que faria aquilo. Aquilo era matar o próprio contratante. Ele foi diagnosticado doente mental. Dizia que a família assim o queria, para poder gastar todo o seu dinheiro. Antes que eles pudessem fazer isso, havia decidido: "Quero morrer." Programaram o dia e a forma do assassinato. O sujeito fazia questão de uma coisa: "Essa aqui morre um dia antes e esses daqui eu quero ver morrer." Ele planejara matar os dois filhos - idealizadores de sua interdição - e sua mulher. "Mulher fraca. Não defendeu seu homem nem dos filhos aproveitadores." Na véspera de sua morte, à noite, a mulher foi tomar banho e foi esfaqueada debairo do chuveiro. Na manhã do dia programado, os dois filhos apareceram em sua mansão e foram recebidos pelo assassino, surpresos por verem gente nova na casa. O homem recebeu-os no escritório. Sentado atrás de sua mesa, sorriu ao ver os filhos. Antes que o mais velho começasse a falar, o mais novo foi abatido por uma facada nas costas. O mais velho, atônito, não moveu um músculo. Apenas olhou para o pai, que ria da cena. O assassino partiu para cima do mais velho e cravou-lhe no peito a mesma faca que matara o irmão e a mãe. Enfim, o velho se levantou e aguardou o golpe de seu "empregado". Quando este levantou a faca em sua direção, o velho sacou sua arma do bolso e desferiu três tiros no "seu" assassino. O mundo pode ser cruel com as pessoas ignorantes.

sábado, 24 de julho de 2010

Espaço em Branco

Um espaço entre paredes
Um quarto inteiro
Um espaço em branco
Um homem só
Um período de reclusão
Um tempo para pensar
Um tempo para escrever
Um tempo para contar
Os dias que não me atrevo a viver só.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Coletivo de maluco?

Um ônibus é a resposta.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Ainda estamos funcionando...

... muito mal. Uma semana atrás, transitando pela Espírito Santo, vi uma placa curiosa. Diante de um motel - há muitos no centrão de Belo Horizonte -, havia o seguinte comunicado: "Estamos funcionando". Fiquei imaginando quem seriam os autores. Os proprietários? Os usuários? Bem, além de atrair uma certa curiosidade para o ramo de motéis, os quais foram fechados temporariamente, com fitas adesivas lacrando suas portas durante alguns meses, o fato aguçou minha consciência no sentido de verificar se estou funcionando também. Acredito que estou, porém muito mal; o raciocínio não tem sido mais o mesmo; o humor tem variado de ruim a péssimo; a capacidade de decidir tem ido de mal a pior; o sono e um cansaço extremos às vezes me dominam mais do que as necessárias oito horas de descanso; as leituras são interrompidas e adiadas para um ponto futuro desconhecido. Como já registrei neste blogue, tem dia que é noite; e os últimos estão anoitecendo muito rápido.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Um poema menor

Um pouco feliz
Um pouco triste
Uma vida curta
Uma morte lenta
Uma biografia longa
Uma lápide em branco.

Escrotos Marginais

Existem escrotos marginais que não merecem nenhuma linha de comentário, vivos ou mortos, quanto mais uma ficção elaborada. Alguns moram em mansões, trafegam de helicópteros e só pisam o chão porque ainda não criam um sistema de holografia perfeito. Reclusos, mais do que em suas habitações, são reclusos em suas cabeças pequenas. Um tiro na nuca ou no ouvido, uma navalhada na garganta ou no rosto, um empurrão na linha do trem, um afogamento... nada disso seria o suficiente para redimirem-se de seus crimes.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Outro copo para morrer

Um copo de vodca para afogar o fígado em água fria engarrafada. Golfada de bile e muita ressaca. Outro copo para morrer de novo enquanto o dia passa na praça dos sujos. Limpeza não se encontra em boteco. O sujeito olha para os outros sujeitos da história que se constrói em relações rasas e não encontra qualquer sentimento perene. Um bêbedo, dizem, disposto a gritar filosofias como se fossem bulas de remédio. Outro copo para morrer, enfim.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Outro morto na praia

Os jornais deram a notícia logo pela manhã. Outro morto na praia do Norte. Nenhum parente ou amigo para reconhecer o corpo. Ninguém sabia a origem daquela alma. Uma semana atrás outro corpo aparecera nas areias da praia do Sul e ninguém, repito, ninguém reconheceu o defunto. Homens, brancos, cerca de quarenta anos. Um policial enviou para todos os jornais fotos dos dois. As fotos, assim que começaram a ser recebidas nas redações dos jornais, foram distribuídas para as sessões policiais. Apenas um jornalista conseguiu identificar de primeira os dois mortos. Um setorista da Assembleia Legislativa. Era novo na função. Herdara do antigo setorista um álbum de fotos com todos os deputados estaduais. A primeira coisa, dizia o velho jornalista que se aposentara, é reconhecer cada um dos deputados. "Eles são vaidosos. Se você hesitar, gaguejar, eles comem o seu fígado e você nunca mais consegue uma declaração deles." Por que os profissionais dos outros jornais não conseguiram identificar os mortos? Por que eles não conseguiram esse furo de reportagem? Simples. A imprensa só vai atrás de quem está na frente dos holofotes. Os dois mortos faziam parte do chamado "baixo clero" e mantinham no currículo uma característica própria desse ramo de políticos, gazeavam muito. Faltavam a várias sessões da Assembleia. Quando compareciam, geralmente votavam contra o povo e a favor de projetos do governador. As causas das mortes? Um mistério. Os motivos acima, se levarmos em consideração a falta de nobreza em gazetar ao trabalho no caso de políticos sob mandato parlamentar, eleitos pelo povo, ou por uma parcela da população, já seriam o suficiente para uma condenação. Talvez a pena tenha sido dura, mas talvez esse seja o preço que se paga pela traição.

domingo, 27 de junho de 2010

Ele fazia por obrigação

Sozinho, pensou se o que fazia era ruim ou bom. Não sentia prazer. Ou seja, não era necessariamente uma coisa boa para ele. Não gostava de perder muito tempo no serviço, não havia muito planejamento nesta altura da vida. Ou seja, não necessariamente exigia-lhe um certo esforço; a experiência eliminava várias etapas do processo. Olhava para o futuro sem uma vontade mórbida de saber o que lhe aguardava, nem se chegaria lá algum dia. Pediu mais uma dose de vodca no bar e saiu pelas ruas do centro tropeçando na sorte ou, principalmente, na má-sorte de alguém que o provocasse um sentimento de antagonismo. Ele matava por obrigação.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O bandido andava a pé

O bandido. Anti-social. Andava a pé, nunca de carro, de ônibus, de moto ou de metrô. Caminhava no centrão, aquele que as pessoas mais sensíveis abominam, onde o cartão-postal é uma passagem apenas de ida. O bandido andava a pé, cercando as vítimas. Multifuncional. Era assassino, ladrão, estelionatário e bicheiro. Esta última, sua profissão. As outras atividades, seus hobbies. Um crápula, dizia sua primeira mulher. Um safardana, praguejava sua segunda sogra. Meu pai, sorriam seus dez filhos. Um sujeito, uma vez, questionou-o no bar, altas horas da madrugada. "Você não dirige?" O bandido sentiu lá dentro do seu coração uma dor. Sim, ele tinha um. A dor passou assim que ele rasgou a garganta do infeliz em golpe já estudado pelos maiores legistas do país. Nunca o identificaram em várias investigações de assassinatos nas cinco regiões. Ele lamenta. Os jornais não publicam mais as fotos de suas vítimas. Era apenas um bandido que andava a pé. Foi o último comentário sobre sua passagem na terra. Morreu de velhice, no interior de Minas Gerais.

sábado, 19 de junho de 2010

Ponto morto

Eu carro, tu corres, ele morre.
Millôrando a escrita.

Aócio Greves não perdoa...

Era um político. Rejeitava todos os clamores da população. Era um administrador, acima de tudo um republicano. Agia em benefício da maioria, apesar desta maioria desconhecer tal benefício. Era uma promessa. Filho de peixe, netinho era. Um dia, a população se rebelou e correu em busca de seus sonhos. Iniciaram greves e foram para as ruas reivindicar o que lhes era negado, o que lhes era surrupiado. Outros poderes acorriam colocando juízes e policiais nas ruas, os primeiros para declararem impedimentos, como os árbitros de jogos de futebol, e os segundos para reprimirem a massa. Aócio Greves era o nome dele. Um político. Nada mais. Não representava uma categoria ou eleitores. Representava uma dinastia de políticos profissionais, administradores dos bens públicos, com muitos bens privados para administrar também.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O assassino de aluguel

Centro de Belo Horizonte. Praça 7. Dentre os cartazistas humanos, um se destaca pelo silêncio de sua figura. Não desbloqueia celular, não compra e não vende ouro, não corta cabelos, não faz orçamento dentário sem compromisso. Sentado sob a sombra da Carijós, o sujeito expõe um cartaz "Assassino de Aluguel". Preciso conferir se é realidade ou ilusão de ótica. Eu me aproximo dele para tentar ler mais informações no cartaz e não há nada além da frase, em vermelho. Você mata? - a pergunta é óbvia, mas eu tinha que fazê-la. Sim, é a resposta. Quanto? Depende. De quê? Do defunto. Parece ser profissional. Já trata o trabalho como feito. "Defunto". Um político, complemento, quanto custa? Depende. De quê? Do escalão. Senador? Bem, local ou de fora? De fora. Aí fica caro. Quanto? Só um momento. O sujeito saca o celular e começa a discutir o assunto com outra pessoa do outro lado da linha. A linguagem parece codificada. Ele olha para os lados, suspeitoso. Não sei por quê. Ele está no centro de Belo Horizonte ostentando uma placa informando que é assassino de aluguel. De que poderia suspeitar? Desliga o celular e escreve num papel o preço do serviço. Eu achava que o trabalho seria mais caro. Pergunto sobre a forma de pagamento. Ele tira novamente o celular do bolso. Eu encerro a conversa ali. Sabe, meu amigo, esquece. Eu estou vendo que você e o seu companheiro são muito profissionais no que fazem, mas essa falta de informação sua, essa falta de conhecimento do assunto faz com que pareçam amadores. Prefiro não me arriscar. Ele olha para mim e diz que é o seu primeiro dia, que vendia próteses dentárias até às 10 horas da manhã, mas que foi demitido porque perdeu um cliente na subida dos degraus do prédio onde era feito o serviço. O velho não aguentou 5 lances de escada. Morreu ali, do coração. Foi então que surgiu esse bico de meio-período, sugestão de sua madrinha. Não podia recusar. A madrinha é uma segunda mãe da gente, falou. Eu me sensibilizei com a história, mas falei para ele que eu só queria saber o que ele estava vendendo. Agora, sabendo o que é, preciso pesquisar mais no mercado. Eu vou ali na rodoviária ver quanto é o serviço por lá e, dependendo do preço, eu volto. Nunca mais voltei.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Olhando nos olhos...

O dia começou tranquilo às 13 horas. Olhou nos próprios olhos enquanto lavava o rosto. A ausência de lentes dificultava tal ação. Não poderia descrever quem estava à sua frente, no espelho. Caminhou as mãos pelo balcão do banheiro e pegou os óculos. Entrou no quarto - ou seja, saiu do banheiro - e foi atrás de roupas limpas. Uma tentativa de vestir-se do jeito que outras pessoas se vestem, pelo menos no ambiente para o qual pretendia dirigir-se. Um banco. Pretendia sacar todo o seguro-desemprego. E não gastá-lo, mesmo numa crise daquelas, mesmo na intenção de comprar mais livros para um biblioteca invisível que não possuía em casa, no quarto da bagunça. Olhando nos olhos do caixa, cometeu o seu maio delito: olhar nos olhos do outro. De repente, um alarme soou. Luzes piscaram. Ele evitou colocar as mãos nos bolsos, única alternativa que tinha quando ficava nervoso. Pensou. Se coloca, eles pensarão que é uma arma. E não era, juraria pela mãe mortinha. Estava desempregado, mas não era ladrão. Tinha escrúpulos, ainda. Apesar de não trabalhar mais. Eu vou sair daqui, pensava. Quem sabe não é comigo, continuava. O caixa devolveu o cartão. Ele balbuciou que queria o dinheiro, mas isso não era mais importante. A situação agora era outra. Olhou nos olhos de outra pessoa, profundamente. Isso não era comum. Cometeu um crime? Saiu com as mãos para os altos, uma vontade enorme de colocá-las nos bolsos. Estavam suadas. Estava nervoso. De repente, a escuridão caiu sobre sua cabeça. Até quando ele cairia nessas conspirações vespertinas? Pretendia sair dessa para uma melhor. Não cometera nenhum crime. Apenas olhou nos olhos...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O escritor morreu

Era assim, um pouco obtuso, que escrevia pelas beiradas da inteligência. O escritor do qual estou falando - e escrevendo - era um sujeito do seu tempo, terrível tempo aquele, e mantinha distância das pessoas. Criava uma redoma em torno de sua obra. Mandava bilhetes para editores de revistas e jornais informando o andamento de seu último livro. Precisava de propaganda, de promoção, de seu nome numa coluna da imprensa. Precisava estar onde uma elite estaria, por isso gastava mais tempo nos banquetes do que debruçado sobre sua obra. Mesmo assim, era reconhecido por muitas pessoas influentes, que mal saberiam enumerar seus livros por ordem cronológica ou alfabética. No entanto, ele era sempre lembrado pelas pessoas que decidiam os rumos do país. Estava sempre em uma pré-lista de candidatos à Academia. Fazia campanha junto às mesmas pessoas que recebiam seus bilhetes acompanhados de edições antigas de seus livros. Tantas edições! Talvez não vendesse tanto. Que importa a quantidade? Ele era um escritor, um pouco obtuso, que escrevia pelas beiradas da inteligência. Morreu. Sua última obra, o próprio obtituário, foi esquecido entre os inúmeros bilhetes aos editores.

sábado, 5 de junho de 2010

O escritor fantasma percorre livrarias

Não deveria ter feito isso novamente. As livrarias não me conhecem. Os leitores não me reconhecem. A mídia não sabe o trabalho que dá escrever apenas sucessos de vendas. Ou esperam que uma patricinha da Barra saiba escrever sobre os sentimentos de uma reclusa? Ou esperam que um político profissional saiba escrever sobre a vida brasileira no século passado? Eu gostaria de saber o que os leitores acham do autor, do autor sem o conhecimento da figura denominada como autor. Eu gostaria de matar todos eles. Pseudo-autores e leitores ignorantes. Uma vez eu abordei um leitor que folheava o "meu" último livro. Na época, lançara uma "auto-biografia" de uma estrela do rock. O jovem estava entretido com todas aquelas descrições, todos aqueles diálogos. Quando percebeu que eu estava olhando, me inquiriu daquele jeito que só os jovens sabem fazer. "Qual é?" Nada, eu respondi. "Então, velho, sai fora!" E eu disse que não precisava aquele ódio, que eu trabalhava na editora do livro, e que gostaria de saber a impressão que tivera sobre o autor daquele livro. O jovem não compreendeu a pergunta e foi logo falando sobre o último disco daquela estrela do rock. Eu corrigi a pergunta e o questionei sobre o autor do livro e não sobre a estrela do rock. Ele não entendeu a pergunta. Eu forcei então uma abordagem sobre o que estava escrito, perguntei sobre o que ele gostou no livro. Ele então respondeu que gostou das cenas sobre uso de drogas, sobre os diálogos travados em momentos adversos da turnê. Eu perguntei então se o jovem saberia dizer se o que ele lera era real ou imaginação. "Claro que é real! Ele não ia escrever mentiras! Você já ouviu as letras das músicas dele?" Eu fiz uma pequena observação, imaginando que seria ali o final da conversa. Você saberia me dizer como essa estrela do rock, mesmo dopada por altas doses de álcool, cocaína e heroína, teria condições de registrar fidedignamente tudo o que aconteceu durante seus períodos de vício, em coma ou desacordado? A resposta foi um soco na minha cara. O jovem pegou o livro e foi até o caixa pagá-lo. Na volta ainda cuspiu em mim e chutou o meu saco.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Um novo nome para o blogue

Em homenagem ao texto premiado pela FEBRABAN em seu Banco de Talentos 2009, o blogue passa a se chamar Encontros Marginais. Da mesma forma como n'O Grisalho Vespertino, ao qual dei o nome de 77 pontos, optei por dar personalidade própria a'O Grisalho Noturno a partir desta data.

Um canteiro de obras

Eles vêm de outras partes da cidade, de onde não existe a chamada urbanização. Constroem casas para outros morarem. Constroem comércios para outros lucrarem. Trabalham como qualquer outro trabalhador, porém das suas mãos saem obras que permanecerão durante muito tempo figurando numa rua, numa avenida, numa praça. Eles chegam ao bairro quando outras pessoas do bairro ainda nem acordaram. Chegam silenciosos. Ao raiar do dia já estão no batente, levantando paredes sem notarem que já existem paredes que os separam das outras pessoas. A hierarquia, o poder econômico, a escolaridade. Tudo isso é colocada numa escada invisível e cada degrau é remunerado de uma forma diferente. A pirâmide do capitalismo demonstra muito bem essa realidade. Poucos nos degraus superiores comandam alguns mais dos degraus inferiores e estes acham que mandam nos demais que se encontram na base da pirâmide, quando sabemos que somente os lá de cima realmente são os mandantes. Eu fico muito triste quando vejo alguém de sol a sol construindo algo que não será útil em seu próprio benefício. Afinal, são dias, semanas e meses para que o objeto saia do papel para a realidade. E na realidade vemos que essas pessoas não são donas do seu próprio tempo.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Um outro caminho a seguir

Ele tomou outro caminho. De costume, iria por ali, pelo meio da feira. Dessa vez, parece que pretendeu despistar-nos. Amador. Caminhando desse jeito pela cidade, ele vai acabar entregando todos os pontos. Um senhor, uma grávida, um jovem universitário. Quem será o próximo? Você viu para onde ele foi? Não é possível que o perdemos de vista! Estávamos tão perto dele! Ele ainda deve estar por aqui. Vamos dar outra volta no quarteirão. Ali. É ele! Vamos abordá-lo definitivamente. Eu sigo por esse lado da rua e você pelo outro. Quando eu apontar, você saca sua arma e nós o prendemos. (...) O quê? Porque você fez isso? Eu estou sangrando... Chame uma ambulância... Você... Você era o próximo ponto...

terça-feira, 1 de junho de 2010

Meio comprimido não basta!

A receita foi para o espaço há uma semana, ou mais. Hoje tentei limpar o organismo e notei a diferença. Se não tomar um comprimido todo dia, o dia se faz treva. O mau humor não se cura com meio comprimido. Meio comprimido não basta! A receita é o vício ou o vício é a receita. A questão é que o comprimido é necessário para apurar os nervos. Não sou um homem de aço, por isso os nervos também não o são. Estou mal. Preciso dormir mais algumas horas. Hoje não vou sair da cama. Notícias ruins hoje. Quem sabe boas novas amanhã.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sobre "Outra história"

Se o Rubens não fosse um rapaz solitário, ele não seria um segurança morando num beco. Estou sem paciência para continuar essa história. Quem sabe alguém se apropria dela - como acontece muito hoje em dia - e lança um belíssimo roteiro de cinema e faz um filme e esse filme seja considerado uma merda e alguém de roliúde ache o filme legal e mude algumas cenas e alguns diálogos e produza um filme de ação fudidão e ganhe um monte de grana. Porque a vida é assim, mermão. Enquanto o bagulho tá na tua mão, não presta. Passou na mão de outro, o negócio vira ouro.

Outra história

Rubens era um rapaz solitário. Morava num beco, no centro da cidade. Todo dia saía cedo para trabalhar. Era segurança de banco. Tinha uma arma, mas nunca atirara em alguém, apenas em placas de papelão do campo de tiro improvisado pela empresa de segurança. Caminhava até o banco e chegava em poucos minutos ao trabalho. Não fazia muita questão de ação, por isso trabalhava na maior agência bancária da região. Imaginava que o grande fluxo de clientes atrapalhasse qualquer investida de assaltantes de bancos. Imaginou certo. Depois de cinco anos trabalhando naquela profissão, nunca precisou sacar a arma no banco. No entanto, certo dia, ao voltar para casa foi abordado por um desconhecido. Este o fez muitas perguntas, engatilhadas rapidamente. O assunto era o banco. Rubens ficou nervoso e matou ali mesmo, na esquina da padaria, o desconhecido. Olhou para os lados e viu que muitas pessoas assustadas o olhavam. Correu. Correu o mais que pôde. Chegando em casa, desfez-se das roupas e da arma. Guardou-a no banheiro. Sentou na cama, esbaforido ainda pela corrida. Ligou a televisão - coisa que não fazia nunca durante o dia - e procurou com o controle remoto qualquer notícia sobre o assassinato. Nada. Desligou a tevê. Deitou naquele momento buscando um fio de paz nos pensamentos, mas sua cabeça só martelava a cena repetidamente. Fechava os olhos, mas parecia que o impacto das imagens era tão forte que tinha a impressão de estar com eles abertos. Levantou, pegou um livro na cabeceira da cama e caminhou até o banheiro. Quando saiu do banheiro tentou novamente a televisão. Era o noticiário. Surpreso, sentou-se na cama e acompanhou-o com especial atenção. Uma notícia sobre acidente de automóvel na rodovia o fez perder a calma. Outra notícia sobre os preços dos alimentos o deixou mais impaciente ainda. Finalmente. Era sobre o assassinato. Concentrou-se nos lábios da apresentadora do telejornal. Ouviu a palavra "assaltante". Pensou que era ele. O confundiram com um assaltante, só podia ser. Ouviu então a palavra "bancos". Era ele mesmo. Descobriram que trabalhava em banco. Levantou-se suando frio. O que iria fazer? De costas para o aparelho, ouviu então que tinham imagens do assaltante "morto". Surpreso, voltou-se para a televisão e, enfim, uma boa notícia. Aliás, ótima notícia. "O homem encontrado morto no centro da cidade fazia parte de uma quadrilha de assaltantes de bancos. A polícia estava à sua caça há seis meses, quando estas imagens foram filmadas no interior do estado. Testemunhas afirmam que ele foi baleado por um rapaz jovem, porém de boa aparência, que parecia muito nervoso. Conforme o delegado, foram encontrados com o morto papéis comprometedores que, suspeita-se, sejam relacionados a um plano de assalto na cidade. Dessa forma, continuou o delegado, a polícia vai focar, primeiramente, no morto e somente depois ir atrás de informações sobre o assassino." O sorriso de Rubens transformou-se em desespero. (Continua...)

domingo, 30 de maio de 2010

Horário oficial: 7 horas da manhã

Esse foi o horário oficial em que acordei hoje. O extra-oficial - pois não levantei de imediato da cama - foi 4 horas da manhã. Estranho. Eu estou dormindo tarde e acordando cedo todos os dias. E sempre dou um cochilo depois das dez da manhã. Nada profundo. Então, acordando cedo, resolvi caminhar um pouco pelo bairro. Como tinha fôlego ainda na altura do Clube Jaraguá, arrisquei uma caminhada mais longa. Desci para a vila dos oficiais da aeronáutica, até o Aeroporto da Pampulha - aeroporto poético, pois chama-se oficialmente Aeroporto Carlos Drummond de Andrade - e cheguei então até a Antônio Carlos, no Pampulha Mall. Ali do lado tem um supermercado. Entrei para comprar algo para beber, pois naquele momento já estava caminhando há uns cinquenta minutos. Eu não deveria sair de casa com dinheiro. Isso é um fato. Logo na entrada encontrei umas prateleiras com livros em promoção. Por quê? Imagino que a região tenha uma parcela de leitores muito grande. A questão é que algo me assombrou. Promoções sempre me assombram. O livro era "Nossas câmeras são seus olhos", de Fernando Barbosa Lima, editado pela Ediouro. Segundo a orelha do livro, Fernando Barbosa criou mais de cem programas de televisão, sendo um dos mais famosos o "Jornal de Vanguarda", pela TV Excelsior em 1962. Ao final do livro, são listados programas desde 1957 ("Cruzeiro Musical", pelas TV Rio e Record) até 2003 ("Casa de Cultura", pela UTV). Bem, eu ainda não o li. As testemunhas desse blogue sabem que estou com algumas leituras pendentes e fica difícil atravessar um livro na frente dos outros, mas acho que pretendo fazer isso até o final do dia. Para minha surpresa, na contracapa do livro vem anexado um DVD, imagino, mostrando alguns dos programas do autor. Ainda não contei o preço da minha assombração. Pasme, leitor. A pechincha foi registrada na promoção "De 54,90 por 9,90". E ainda vem com um DVD. Por isso que eu sempre saio com dinheiro no bolso. Dinheiro miúdo, é claro. Sobraram-me dez centavos apenas. E fiquei com sede até chegar em casa. Aliás, não cheguei em casa apenas com dez centavos, mas o dobro disso, pois na saída do supermercado encontrei outra moedinha de dez centavos no asfalto.

sábado, 29 de maio de 2010

Um sábado

Um sábado é um sábado. Nada mais. Comecei o dia de madrugada, danificando o teclado ao abri-lo para limpar. Não sabia quantas coisinhas miúdas existem dentro do teclado. Umas borrachinhas entre os botões e a placa de comandos. Enfim, comprei outro - preto - mais adequado. Agora posso escrever algumas coisas sem me preocupar com algums botões que no teclado antigo estavam mais fundas que outras. A letra A agora está legível. Isso não era muito problema para mim, pois antes de ser digitador fui datilógrafo. Datilografei muitas laudas no tempo de faculdade, de Rádio Universitária. Possuía uma Olivetti em casa, presente do meu pai. Mais leve que a Remington dele. Isso ficou para trás. No entanto, para a minha amada filha, as coisas ficariam difíceis de localizar. Principalmente porque, durante a "limpeza" - e posterior destruição - do teclado, a tecla A ficou sem o adesivo rosa que minha filha havia colocado para identificar a letra. Bem, problema resolvido. Agora, só me falta aquela disposição para lançar voos mais longe: escrever aqueles livros que estão imprensados na minha cabeça.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Retomando o assunto "caminhadas"

Há dois dias não saio de casa, mas fiquei aqui mastigando uma impressão. O "breu" da Praça da Liberdade parece mais seguro do que o "dia-noturno" da Praça Sete. Talvez seja aquela iluminação artificial ligada no modo 100% que nos deixa totalmente "ligados" no que se passa, em quem passa do seu lado, no que acontece do outro lado da faixa de pedestres. A Amazonas, no entanto, parece um antro de perdição, para não falar do entorno da rodoviária. As árvores da Amazonas parecem esconder animais tão perigosos quanto os que se encontram na floresta amazônica. A primeira vez que pisei em solo belo-horizontino, eu fiquei receoso com o Parque Municipal. Não entrei nele. Fiquei receoso também de sentar-me numa das cadeiras da rodoviária, pois notava toda aquela movimentação de ladrões de bagagens, diferente da rodoviária de Goiânia, o Shopping Araguaia. É, a rodoviária de Goiânia é um "shopping center"; ou seria o Shopping Araguaia uma rodoviária? Vou ver o que faço hoje. A noite não foi legal. Acordei às 3 horas para escovar os dentes! Que hábito sinistro! Outro dia acordei às 4 horas da manhã para tomar banho?!?! Talvez eu precise caminhar mais. Essa hibernação não tem me feito bem.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Eu tenho medo de biblioteca

Eu percebi esse medo hoje à noite. Aflorou quando finalmente cheguei à Praça da Liberdade após uma longa jornada pela Rua da Bahia. Ali tem a Estadual e uma outra que não guardei o nome, me parece, num anexo ao lado do Museu de Mineralogia. Ainda estavam abertas, percebi, pelo número de pessoas esparramadas pelas mesas e cadeiras de leitura. No entanto, não me atrevi entrar. Estava com um livro na mão, para variar, e sempre tenho receio de entrar em bibliotecas e livrarias com livro na mão. Medo de ser abordado na saída e acusado de larápio.

Afora esse assunto, relacionado ao exercício da mente, me chamaram muito a atenção as caminhadas e corridas realizadas na Praça propriamente dita. Numa escuridão de filme de terror, não fosse aquele amontoado de gente ofegante, suada - uns se arrastando e outros demonstrando alto vigor físico -, eu teria a impressão de que o mundo estava prestes a acabar, a energia tinha sido cortada e o povo corria para se salvar de uma ataque alienígena. Não. Eram apenas esportistas. Só de olhar para eles me cansei. Sentei num banquinho do ponto de ônibus defronte ao Niemeyer e aguardei pacientemente a linha 5031. Observando, é claro. O prazer do voyeur é justamente observar sem ser notado. E notei que alguns pseudo-atletas chegam em lustrosos automóveis e iniciam o ritual do aquecimento. Por que, meu deus, não vieram caminhando? Tudo bem que eu peguei um ônibus lá do Dona Clara e desci na Curitiba, mas daquele ponto até a Praça da Liberdade eu vim caminhando, me exercitei, imagino, mais que algumas pessoas programadas para desfilar por ali.

Um expresso diurno

Não sei como aguentei ficar o dia inteiro na rua. Isso foi a segunda-feira. Hoje estou mais caseiro. A minha garganta arde. Parece que estou virando um dragão, prestes a soltar fogo. Caminhei bastante pela Savassi, fui ao trabalho resolver algumas questões pessoais e profissionais. Foi estranho pisar lá depois de tanto tempo, mas foi bom reencontrar as pessoas. Conversas amenas, sem forçar a barra. Nada sobre trabalho, apenas sobre a vida, os acontecimentos, essas coisas que nos fazem pensar no presente, sem amanhã ou ontem. Como sempre, não voltei para casa sem livros. Ainda estou com leituras pendentes, infelizmente. Pretendo retomá-las e, quem sabe, escrever esses livros que perambulam pela minha cabeça ociosa. Dois são relacionados à minha filha. Os outros três têm a ver com as leituras dos últimos meses. Tudo ficção, porém baseado em processos reais. O teclado acabou de tremer. Era o celular vibrando para me dizer que horas eu deveria acordar. Mal sabe ele que eu não dormi novamente. Um abraço.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Tentando me organizar

Recebi um sinal de fumaça da esposa. "Volta aos teus horários." O resto é impublicável. Coisa pessoal. Eu pretendo partir para a cidade de Belo Horizonte hoje. Cometi um equívoco pagando um boleto de madrugada e pretendo ir ao banco solicitar o estorno do valor. Se não for possível, vou ter que caçar um manual de coisas tolas e estudar nas próximas semanas para uma prova que não desejo fazer. Estou noturno e madrugador, não sei por que cometo essas gafes. Eu não estou nem conseguindo concentrar na pia da minha cozinha, quanto mais estudar para alguma coisa. Eu pretendo retornar antes do pôr-do-sol, pois enfrentar fila de banco é bem isso. Ainda tenho algumas coisas mais para resolver, mas já falei para a minha senhora "quando você voltar, você resolve". Espero que assim seja.

sábado, 22 de maio de 2010

Rodando pelo centro da cidade

Uma fé nos números da loteria acumulada me fizeram percorrer o caminho que leva o meu bairro ao centro da cidade neste fim de tarde de sábado. Acabara de acordar e usei pela enésima vez a velha camisa listrada de botões toda amarfanhada. Corri até o último piso do Shopping Cidade e apliquei alguns tostões num sonho distante no mesmo caixa de lotérica onde dois anos atrás acertara a quadra. Saí com uma fé ainda julgada, ainda não confirmada. Quem sabe depois desse texto eu caia na realidade. Endireitei o corpo sonolento para entrar na Leitura e sentar no chão em busca de um livro interessante no conteúdo e no preço. Não sei por que faço isso. Ainda não terminei de ler os outros três volumes que dormem ao meu lado na cama. Saí com as Novelas Nada Exemplares de Dalton Trevisan, uma publicação em capa de couro da Editora Record/Altaya. Como trabalhador e endividado, corri até uma loja de departamento para quitar uma despesa, em atraso. Aproveitei a descida da Goytacazes e desci pela Rua da Bahia no sentido do Palácio das Artes. Davam lá, às 20 horas, na exibição No Silêncio da Noite O Filme Noir "Os Assassinos", de Robert Siodmak, baseado num texto de Ernest Hemingway, com Burt Lancaster e Ava Gardner. Um filme divertido sobre assalto e traições. Tentei ficar mais um tempo no centro de Belo Horizonte, mas o certo era voltar ao meu bairro. Sendo assim, caminhei até o ponto de ônibus estratégico defronte ao Parque Municipal. Digo estratégico pois dele posso tomar três linhas diferentes para casa; uma pela Cristiano Machado e outras duas pela Antônio Carlos. Eu não consigo mais sorrir verdadeiramente com os programas de televisão e não consigo manter-me programado pelos horários da tevê. Acho que estou me libertando de alguma coisa. Vou ver se termino o depoimento do Marco Antônio Tavares Coelho e a doutrina do choque de Naomi Klein antes de folhear o Trevisan.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Um sonho louco

Estava amarrado com as mãos para trás. O equipamento de tortura ali do lado. Estava nu. Dois sujeitos em volta, rodeando a carne prestes a fritar. Eu acordei. Abri os olhos e percebi que estava nu. Olhei para os lados e eu estava no meu quarto. Olhei melhor para o canto do quarto e vi o equipamento de tortura ali do lado. De repente, antes que eu pudesse me levantar, eles entraram no quarto e lutei até ficar muito cansado. Adormeci durante a peleja. Algum tempo depois, acordei. Olhei para os lados e não reconheci nada ao meu redor. Ouvi alguns passos e um conversa estranha do lado de fora do que seria o meu quarto. Notei a cama muito abaixo do padrão da que costumo usar. Quando pisei no chão, não haviam tacos de madeira, apenas um chão de cimento, frio e sujo. Abriram a porta e entraram sem cerimônia. Pareciam me conhecer há muito tempo. Chamavam-se de Zé. São pouquíssimas pessoas que me chamam assim, alguns por carinho, porém aqueles dois não tinham essa intenção. Iniciaram uma pergunta como se esta já me tivesse sido feita várias vezes. A verdade é que eu só notei que se tratava de uma pergunta pela entonação final da frase "não é mesmo, seu filho-da-puta?". Eu disse que não sabia do que falavam. Eu estava de licença-médica, para tratar dos nervos, e então acordei ali, naquele lugar. Eu voltei a adormecer de repente e foi como se tivesse acordado alguns segundos depois. O caso é que não poderia ter sido assim. Eu estava com uma barba muito comprida e parecia muito mais magro do que quando adormeci pela última vez. Eu estava num ônibus em Goiás. Estranho. Eu morava em Belo Horizonte há pelos menos dois anos e meio. Estava usando roupas que não costumo usar. Apesar da barba comprida, os cabelos estavam bem arrumados. Carregava também uma pasta. Desci do ônibus e caminhei até um prédio público. Pareciam me esperar. Chamaram-me de José e deixaram-me entrar numa sala. Esperei alguns minutos. Um senhor entrou na sala e perguntou "trouxe a minha encomenda?". Não entendi a pergunta. Estava carregando apenas uma pasta. Resolvi olhar o que tinha dentro dela, mantendo o olhar também no senhor que me chamou de José. Toquei no fundo da pasta e apalpei um negócio frio. Quando retirei da pasta e vi que era uma arma, um filme progrediu em minha cabeça rapidamente, sem que eu tivesse tempo para assimilá-lo. "Páááá!" O senhor caiu na minha frente. Um buraco no rosto parecia de uma bala. Levantei da cadeira e olhei para os lados, a porta estava fechada. Talvez alguém tivesse escutado o barulho, a queda do senhor - ele era grande e gordo -, mas ninguém veio até a sala. Olhei para baixo e vi na minha mão a arma que retirara da pasta. Não sei o que fizeram comigo, mas eu voltei a dormir e acordei novamente, imagino, alguns anos depois, pois numa tarde de domingo eu vira duas crianças pulando do lado da cama e chamavam-me de "pai". Não os reconheci. Imagino que não sejam meus filhos. Voltei a dormir, e só acordei novamente numa sala de hospital. Havia muita gritaria e muito sangue. Diziam para eu não me preocupar. "O tiro foi de raspão." Eu, que nunca havia tocado em uma arma, agora estava num pronto-socorro todo ensanguentado. Olhei para fora da sala de atendimento tentando identificar alguém, algum conhecido. Vi apenas um militar por um vitrô, não desses militares da PM. Parecia algum oficial da marinha ou da aeronáutica. Não sei. Voltei a dormir. Dessa vez acordei muito velho, sem forças para levantar da cama. Olhei para um armário do lado oposto do quarto e esforcei-me para levantar o corpo até vislumbrar meu rosto num espelho. Eu estava muito velho. Todos os cabelos do meu rosto estavam brancos. Tentei um sorriso e vi que me faltavam dentes. O que aconteceu comigo naqueles dias de licença-médica?

terça-feira, 18 de maio de 2010

Olhos noturnos

Marujo de olhos noturnos não avista o farol
Apenas um mar, imenso mar escuro
Cercado de estrelas a furar os olhos perdidos
De um marujo tentando se encontrar

Marujo de olhos noturnos procura palavras
Para escrever uma canção de amor
Cercado de sereias a furar os olhos perdidos
Entoa um poema para sua estrela

Cansado de navegar em águas turbulentas
O marujo retorna à terra, ao seio de sua família
Finca bandeira e planta sementes de uma árvore
De frutos saborosos e raízes fortes

Eu não sou um marujo, mas gostaria de ser
Pois retorno, sempre que posso, aos braços de minha esposa

(Esboço de um poema sobre os olhos noturnos que guardam o meu sono)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O trabalhador em fuga

Uma rotina de trabalho desagregador. Uma hora para ler, uma hora para escrever, outra hora para reler, outra hora para reescrever. Nada de carregar pedra. Nada de quebrar pedra. Não produz nada, apenas repassa as informações necessárias para um ponto A transmitir a um ponto B e quem sabe ganhar a causa contra um ponto C. Um trabalho alienado. Um trabalho não recompensado. A transformação das horas de trabalho em dinheiro, em capital. O trabalhador em fuga procura uma nova rotina de transformação do trabalho em dinheiro. Um caminho em círculo, indo e voltando ao mesmo ponto de sempre. Um trabalho em troca de dinheiro. Reconhecimento, nenhum. Quem sabe escrever umas poucas palavras em sintonia com o pensamento não programado pela rotina de trabalho torne a vida um pouco melhor do que quebrar pedra, de carregar pedra e não ver o nome na placa de inauguração daquela obra que enriqueceu uns poucos e roubou o tempo de milhares. Eu gostaria de escrever mais um pouco, mas já passa da hora. Amanhã já é hoje. Sábado foi o Dia Internacional do Trabalhador. Muitos morreram para reduzir a exploração do trabalhador pelo patrão. Muitos morreram para reduzir o tempo que o trabalhador passaria na oficina, no campo de obras, na indústria. E muitos ainda não conhecem os prazeres da leitura, da literatura, da pintura, da música. Maurício Pereira tem uma música do trabalhador que faz música. Vou procurar o disco e depois volto a escrever mais sobre o ofício de viver.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Um pouco de som sem sono

Um ruído de Maná
Um eco perdido
Um seco molhado
Um texto lido
Um pretexto
Imprevisto
Um pouco de som sem sono
De cantar de lábios cerrados
En el muelle de San Blas
Um jogo frio sem preocupação
Coldplay

sábado, 17 de abril de 2010

Jornalista Ocioso

Há muito tempo largou o jeans velho e o cabelo comprido. As barbas também. Mas, principalmente, largara as grandes idéias, ideais, reportagens, para trás. Resolveu ganhar dinheiro. Dar opinião sobre tudo e sobre todos. Mas, principalmente, mentir. Foi comunista e tornou-se anticomunista. Foi torcedor de futebol e tornou-se um individualista jogador de xadrez, avesso à massa. Conquistou o país com seus comentários noturnos considerados inteligentes por pessoas que desconheciam informações básicas sobre geografia e história. Anda numa roda-viva, distribuindo autógrafos e posando para fotos, preenchendo o orkut de meio mundo. Lança moda. A última é literatura política para analfabetos políticos. Algo do tipo auto-ajuda para não iniciados nos conceitos básicos de política e filosofia. Ah, o sorriso! Que sorriso maravilhoso! Construiu o sorriso baseado nas últimas técnicas de cirurgia plástica e pesquisas sobre artistas de cinema mais atraentes que o mundo já viu e gostaria de ser. Freqüenta a sociedade apenas quando é pago. Comenta sobre o mundo moderno e o interior do Brasil - do qual conhece menos que um palmo - apenas quando é pago. Mas se você perguntar sobre o último livro ou comentário abre o sorriso e estende a caneta: - Onde quer que eu assine. Outro dia falou sobre o presidente e desfilou seu último clichê. Ele espera ser chamado, informalmente, é claro, pelo adversário político do presidente para auxiliá-lo em sua campanha. Informalmente, mas bem pago.

sábado, 27 de março de 2010

Trabalho

Soturno. O grisalho percorria as ruas do centro em busca de histórias. No quadrilátero da rodoviária, também chamado "inferno do crack", coletava retratos de uma sociedade distante das colunas sociais. Remunerava cada transeunte com uma moeda. Sabia que em pouco tempo o metal entraria no pulmão dos anônimos em outra forma. A remuneração em troca de umas palavras, de um perfil exclusivo de uma alma que se esconde durante o dia. Nunca fumou, nunca bebeu, nunca fornicou. Mais puro que um senador. Caminhava agasalhado, colhendo impressões não digitais. Essa tarefa, colher impressões digitais, deixava aos policiais do perímetro. Paisanos, caminhavam como aqueles viciados da rua escura de quatro faixas de rolamento. Achacavam qualquer um com arma em punho. Sobravam bofetões aos inocentes. Uma cruz para os culpados. O grisalho já havia cruzado com um paisano. O sujeito enfiou o ferro em suas costelas e rogou-lhe uma praga nos ouvidos. As palavras mais sujas que ouvira em sua vida. Mal sabia o paisano que o grisalho era o matador da Venda Nova, autor do best-seller "Encontros Marginais". Um giro perfeito sobre o próprio eixo e um golpe certeiro na jugular destruíram a empáfia do servidor público. O grisalho despiu-se do agasalho e seguiu seu caminho à caça de histórias para seu novo livro.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Banco de Talentos Febraban 2009

A 16ª edição do Programa recebeu um total de 478 inscrições válidas, assim divididas: 52 em Artesanato, 15 em Escultura, 92 em Literatura/Contos, 131 em Literatura/Poesias e 188 em Música.


O corpo de jurados reuniu-se durante o mês de setembro de 2009, na cidade de São Paulo, e foi composto por especialistas em cada tema.


Artesanato e Escultura – Elizabete Sílvia Pocay da Silva, Maria José Sanches e Maria Neusa Ataide.

Literatura/Contos – Caio Porfírio Carneiro, Hersch Basbaum e Rosani Abou Adal.

Literatura/Poesias – Carlos Francisco de Morais, Betty Vidigal e Milton de Godoy Campos.

Música – Edmilson Capelupi, José Domingos, Marcos Romera e Tutti Baê.


Após os exames e reuniões, os selecionados, por categoria, foram os seguintes:


Artesanato – Almir Nunes, Andrea Eiko Minazaki, Candy Mariá Garcia Martinez, Eder Flávio Polesi, Filipe Fernandes, Joel Pereira Silva, Jose Francisco de Araújo, Lígia Cristina da Silva, Maria Janete Marianoff, Manuel Rogério Cordeiro, Maria Angela Alvares Cacioli, Maria Paula Santos Pirollo, Morvan Ulhoa de Faria, Regina Franco e Sílvia de Fátima Alves.


Escultura - Erivan Araujo, Carmen Campetti, Flávio João Forlin, Lígia Cristina da Silva, Luciana Paula Reggiani Mattioli, Malaliel Jose de Souza, Minami Suenaga Jardineiro e Rosina Ilda Maria D’Angina.


Literatura/ContosAdalberto Alves de Almeida, Athos Ronaldo M. da Cunha, Carlos Alberto de Souza Santana, Carlos Augusto Decupero, Cleideli Carrogi, Eduardo Rocha Neto, Fabiola Santos Rangel, Jose Cristian da Silva Pimenta, Lena Demara Pinheiro Nascimento, Luciana Fátima da Silva, Marco Antonio Hecksher Corrêa Neto, Rubem José Cabral Troncarelli, Sandra Romero de Santana Dias, Silvia Aparecida Boni Gattai Siffert, Taisa Prado Pereira de Jesus e Valdemar Bruno Luz Filho.


Literatura/PoesiasAdailson Jose Souza Santos, Agnaldo Tadeu Gomes, Alexandre da Silva Damasceno, Clóvis Mendes Silva, Denise Aidar Warnecke, Eduardo Hernandes, Elcio Ribeiro Pinto, Eliana Holtz, Flávio Augusto Albuquerque Silva, Francicarlos da Silva Diniz, Frederico Regis Pereira, Itamar Nunes de Souza, Itamar Mutchnik, Ivan Souza Costa, João Luiz de Oliveira Flora, João Porfírio Sobrinho, Maria Angela Alvares Cacioli, Maria Inês Lempek, Morvan Ulhoa de Faria, Ndjane Melo Santos, Norma Santi, Paulo César Paschoalini, Patrícia Maria de Carvalho Ferreira, Rodrigo Amaral Leite, Rosa Maia de Lima Geraldi, Sandra Romero de Santana Dias, Sebastião Fernando de Queiroz Gomes, Sérgio de Mesquita Serra, Sílvia Maria S.C. Souza, Teresinha Fedato Tavares, Vinícius Lima dos Reis, Wagner Laise de Andrade e Zoilo Bolognesi.


Música – Eduardo Gomes, Edvaldo Galdino Silva, Gilton Della Cella, Hugo de Luna Freire Sobrinho, Jefferson Marcos Gomes do Carmo Silva, Lúcia Helena Lemme Weiss, Luis de Souza Santos, Luiz Carlos Vidal Maia, Mara da Costa Fontes, Ubirandí Tavares de Albuquerque e Wilma de Araujo Bezerra.

sábado, 13 de março de 2010

Buda que Bariu!

Uma gripe chegou sorrateiramente no templo.
Um monge e dois turistas foram atingidos.
- Buda que bariu! - exclamou o monge.
- Puta que pariu! - registrou um dos turistas no caderno.
Era jornalista. Em férias, dizia.
O monge olhou para o caderno e reclamou.
- Você não vai registrar isso.
- Não posso?
- Nem fudendo.
Espantado, o jornalista recolheu as coisas na mochila e saiu correndo.
Foi a última vez que eu vi um monge tão puto quanto aquele.
Para ficar registrado, eu era o outro turista.
Gravei toda a cena com uma câmera. Não coloquei no Youtube porque, quando eu tentei fugir do monge, ele me deu uma rasteira e uma sova. Hoje, ele é o maior documentarista do Youtube. Seus melhores trabalhos são: "A vida dos grilos", " O voo do pássaro" e "Uma forma de viver em paz longe de turistas espertinhos".

Um pouco de suor no rosto

A pedra, o padre, o Pedro
Ah, pedra! Oh, padre! Ó, Pedro!
Um pouco de suor no rosto
E descubro que a maçonaria
Vem de pedreiros
Construtores de igrejas
Pedreiros livres!
Isso existe?
Liberdade de pedreiros?
Na maçonaria não deve haver mais pedreiros...

segunda-feira, 1 de março de 2010

O galo

O galo cantou às cinco da manhã. Rompeu o silêncio matutino. Levou uma pedrada. Respondeu com outro canto mais demorado. Abriram as janelas os curiosos. Levou outra pedrada. Resolveu mudar o disco. Cacarejou, cacarejando. Já eram quase seis e o galo não parava de cacarejar. O menino da vizinha puxou aquela espingarda de chumbinho para fora da janela e o tiro foi seco. O silêncio surgiu para alegria dos trabalhadores ainda cansados. Não deu tempo nem de fazer o café e lá estava o galo cacarejando novamente. O menino botou a cara para fora da janela e só viu uma piscadela do galo em sua direção. Amanhã eu te pego, disse o menino. Vamos esperar. Vamos esperar para ver o final da história.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Os pássaros cantam lá fora...

... e aqui dentro, insone, ele escreve uma linha sobre o assunto.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Sem inspiração nos dias quentes

Tentei escrever um livro, um conto, mas só consigo expor no meu blogue essas frases aqui. Estou no final de minhas férias e só consegui elaborar algumas poucas páginas. O calor está me sufocando. Imaginei que à noitinha conseguisse trabalhar o texto, mas a temperatura tem sido a mesma do período que vai das oito da manhã às oito da noite. Às vezes pior. Como escritores conseguem escrever durante um suadouro? Prometi outra coisa antes das férias. Prometi que voltaria a correr. Impossível. Se não consigo escrever, que é uma tarefa física mais tranqüila, quiçá correr na rua, sobre o asfalto quente. Outro dia tentei caminhar. Fui até o supermercado e voltei. Há uma subida na ida. Na volta a inclinação facilitaria a minha vida, mas isso de nada adiantou. Peguei uma insolação e só me recuperei depois de um banho gelado e de beber muita água. Um dia depois, soube, foi o mais quente, com maior incidência de raios ultravioletas no ano. Que sorte a minha, pensei. Agora, estou aqui, com a promessa quebrada entalada na garganta. Depois do carnaval eu volto a trabalhar, provavelmente, acima do peso e sem uma história digna de publicação.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O barulho no condomínio

O dia começou no meu condomínio. O barulho é sinal de que alguém deveria estar morta. Opções? Não tenho. Moro de aluguel. O bairro é bom, tranqüilo, até o portão. Dentro do condomínio há uma voz que grita. As outras a seguem em coro. Uma lástima. Sábado e domingo era dia de descanso, até a mudança de governo no condomínio. Alguém grita pela filha na porta de minha casa. Poderia ter continuado a morar nos fundos, porém vagou há um ano um sobradinho na frente, todo mobiliado. Esse é o preço. Descobri há algum tempo que a filha, na verdade, é uma cadela. Não imaginava uma criança tão tola e surda que só respondesse aos apelos da "mãe" por causa de gritos intermitentes desta. Eu vou colhendo o que plantei. Um dia, quem sabe, eu colho uma residência no meio do mato ao lado de um fio d'água.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O calor noturno

O calor noturno se umidifica no pescoço sem coberta descoberta a região corporal suada pelo calor noturno que se libera e aprisiona o corpo e o sono tornando difícil a convivência entre os dois com o terceiro a espreitar e a pregar as dobras do corpo com uma fina linha úmida e salgada entornada e depositada cirurgicamente no caminho mais fácil das articulações.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Trabalho noturno

Um trabalho noturno para começar o dia. Um sujeito na estiva. Cidade sem mar. Um trabalho noturno para encerrar a jornada de oito horas de atendimento ao público. Um sujeito sem mar. Na estiva. Olhando pra lua. Contando estrelas. Um sujeito noturno em busca de trabalho. Contador de estrelas. Contador de história no porto da cidade sem mar.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O silêncio

Fecho os olhos para não ouvir.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Cego no Haiti

Tateou pela superfície do corpo e não sentiu os membros. Estava escuro. Deu por falta de uma perna e de um pé. A perna esquerda e o pé direito. Acenderam luzes. Ouviu um alvoroço. Notou que uma laje despedaçara parte do seu corpo e que vários desconhecidos estavam felizes em vê-lo. Preferia estar cego a aleijado. Chorou.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Ratos e Baratas

Na área de serviço há um tapete de asas de baratas e fezes de ratos. A noite foi longa para os habitantes daquele compartimento. Uma chuva fina sobre o bairro, uma nuvem de veneno nas casas vizinhas. Procuraram o único lugar limpo do condomínio: aquela área de serviço. Área que na manhã seguinte apresentava a descrição inicial. O cheiro denunciava o ralo do banheiro. No entanto, depois de várias lavagens por meio de água, sabão e produtos químicos, o cheiro permanecia, e não era o cheiro do ralo. A porta empenada dificultou o acesso ao setor de lavanderia. O tapete era negro e marrom. Atrás das prateleiras de um armário de ferro não montado, residiam 3 corpos. Os vencedores da noite, os ratos, depois de exterminarem as baratas, morreram por conta do veneno das outras casas de onde haviam fugido. Um dos corpos era franzino, largado no meio da área, a um palmo da máquina de lavar roupas. Os outros dois corpos, um franzino tal como o primeiro e um enorme - do tamanho de um antebraço adulto -, estavam fixados entre duas prateleiras. Gordos e fedorentos. O trabalho para tirá-los dali exigiu uma pequena pá e alguns sacos pláticos. A respiração teve de ser feita oralmente. A podridão se fixava no cérebro quando inspirada pelas narinas. Não era dia de recolhimento de lixo. Apesar da penalidade prevista, não se podia manter aqueles corpos estranhos dentro de casa. Jogados do outro lado da rua, permaneceram até o dia seguinte, quando foram recolhidos pelos garis do caminhão de lixo.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Eco

Ecológico
Eco
Lógico
Comunidade
Sem unidade
No muro
Não apenas palavras
O vento sopra
Os obstáculos fazem
Música
No muro aberto
Veia exposta pelo asfalto
E escrita por poetas
Belo Horizonte

A quinta coluna

No começo as divergências salientaram diferenças impossíveis de conciliação. A quinta coluna, o avesso infiltrado, abriu um buraco na organização celular. Um câncer. Uma vértebra fora do lugar ainda assim é uma vértebra. É um objeto estranho no conjunto da obra. Uma ovelha negra no meio de ovelhas brancas. Não é um lobo a quinta coluna. Ela leva o corpo a ter outro cérebro distinto daquele que ainda permanece no corpo original. Altera o movimento, se não estancada. A boca divulga palavras contraditórias de um cérebro sustentado por uma quinta coluna que não se sente mais parte do corpo de origem.