sábado, 9 de outubro de 2010

O pregador de mentiras

O homem estava cansado e sedento. Trabalhara durante o sábado nas obras do condomínio residencial no alto da montanha. Descera, agora, no fim da tarde, voltando para casa. Caminhando pelo centro da cidade, vislumbrou o palácio religioso. Ostentando uma fachada luxuosa, a igreja possuía dezenas de portas e centenas de janelas. O homem resolveu entrar no estabelecimento comercial. "Quem sabe tem um bebedouro." Subiu os degraus e foi recebido por um homem-armário. Pegou um jornal com as orações do dia e os classificados abençoados. Escolheu um lugar para sentar e aguardou. A próxima sessão de descarrego começaria dentro de vinte minutos. Buscou com os olhos uma placa que informasse a localização do bebedouro. Não localizou nenhuma. Resolveu se aproximar de um fiel. Começou, então, um diálogo digno de pessoas humildes. "Esse lugar é muito bonito." A figura de quem se aproximou respondeu sem muito interesse. "É verdade. Muito bonito." Vendo que a conversa não tinha futuro, foi logo para a questão que o perseguia desde que estava na rua. "Hum, sabe, antes de começar a apresentação..." O outro arregalou os olhos para ele. Pensou rapidamente no que dissera. Precisava entender a surpresa. Entendeu logo o que havia surpreendido o fiel. "Digo, o culto, sabe? Antes de começar, acho que vou beber um pouco de água. Você sabe onde fica o bebedouro?" O fiel desfez a cara de surpresa, baixou os olhos para o folheto das orações e indicou a direção. "Que bom. Eu já estava seco. Meus lábios estavam pregados de tanta sede", pensou o homem. Levantou-se e caminhou até o bebedouro. Chegando lá encontrou outro homem-armário. Imaginou. "Esses caras se vestem como seguranças. Acho que vou beber água e cair fora daqui." Sorveu o jato de água que saia do equipamento. Estava bem gelada. Quando começou a se aproximar da porta de saída encontrou outro homem-armário. Aquilo o intimidou e o fez mudar de ideia. Ficaria para ver a apresentação, digo, o culto. Sentou-se próximo da porta de saída e fechou os olhos. Era preciso descansar. Afinal, levantou muitas paredes naquele sábado. De repente, quando abriu os olhos, percebeu que não era mais uma das poucos testemunhas ali. Estava cercado de fiéis. Homens, mulheres, crianças, velhos, velhas e homens-armário. No púlpito, uma figura de terno iniciava sua apresentação, ou culto, seja lá o que fosse aquilo. As pessoas vibravam com as palavras daquele sujeito. O homem começou a olhar as pessoas que o cercavam. Algumas estavam realmente muito emocionadas, outras pareciam estar em transe. Aquilo começou a assustá-lo. O sujeito do púlpito interrompeu o show-culto. Começou, então, a suplicar doações em dinheiro. O homem, liso como todo trabalhador honesto, entendeu que já estava na hora de sair dali. Tentou levantar, mas foi impedido pelas pessoas que o ladeavam. Como dizia, elas estavam em transe e ele temou acordar os sonâmbulos. Incrível, alguns pareciam zumbis. Dormiam de olhos abertos e gritavam. Seu coração começou a bater mais rápido. Foi então que aquele homem do palco gritou e apontou o dedo em sua direção. "Basta!", gritou. Todos interromperam a catarse coletiva. Ele levantou-se e perguntou: - Quem, aqui, tem dinheiro para usar ternos tão caros como esses homens da igreja? Ninguém respondeu. Perguntou novamente: - Que, aqui, tem dinheiro suficiente para comprar um carro ou uma casa como esses homes da igreja? Ninguém respondeu. Antes que emitisse uma nova pergunta, o homem foi cercado pelos homens-armário e o sujeito lá do palcou gritou. "Irmãos, esse homem está com o diabo no corpo!" E todos gritaram em direção a ele. Aconteceria um linchamento, pensou o homem. "Esse povo vai me linchar." Os homens-armário o pegaram pelos braços e o levaram ao palco. O sujeito com o microfone começou a gritar. "Sai desse corpo que não te pertence. Sai capeta!" O homem entrou na jogada, afinal precisava se safar daquela situação. Começou a dançar. O sujeito do microfone pegou em sua cabeça e mandou mais uma vez. "Sai desse corpo, capeta!". O homem caiu no chão, ajoelhado. Depois deitou-se no chão. Levantou. Os fiéis aplaudiram. O sujeito do microfone começou a sambar no palco. Os homens-armário o levaram para trás do palco. O homem recebeu uma nota de cinquenta reais. Por fim, ele perguntou: - Se vocês precisarem novamente dos meus serviços, estou a disposição. Uma mulher de saia longa e cabelos amarrados aproximou-se dele e sussurrou em seu ouvido. "Nunca mais apareça aqui." Ele olhou para ela e para os homens-armário que a acompanhavam com um misto de surpresa e terror. Saiu do palácio religioso pela porta dos fundos e nunca mais foi visto naquele templo, naquela obra, nem em sua casa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário