domingo, 27 de julho de 2008

O coletor de corações

Fazia ponto na esquina da Amazonas com Afonso Pena. Vários trabalhadores adentravam o PSIU à procura de serviços, de registros. Segurando sua modesta plaquinha - não comprava vale transporte, nem vale refeição -, esperava os curiosos se aproximarem. Depois de três palavras, ou conquistava, ou era taxado de louco. "Jesus te ama", dizia. Sua profissão, não remunerada, consistia em propagar essa expressão e, quem sabe, conquistar algum coração angustiado. A peleja era dura. Todos que circulam por aquela região sempre estão com pressa. Não suplicava, apenas aguardava. Quem se aproximasse, recebia seu "Jesus te ama" com a voz mais sincera e o olhar mais puro que alguém já tenha admirado. Talvez, este personagem esteja em minha mente de verdade. Talvez. Não o vi, mas já o imaginei sentado na Rio de Janeiro, sentado aos pés do monumento da Praça Sete.

sábado, 26 de julho de 2008

Fogaça e os malas

Voltava do trabalho, esgotado. Não tinha um puto no bolso além do bilhete do trem. Jornal popular debaixo do sovaco, remela no olho. Fogaça era operário no norte da cidade, morava no sul, mas não conhecia o centro. Nem a zona do baixo meretrício perto da rodoviária. Só andou por aquelas bandas quando desembarcou vindo do oeste. Roubaram seus bagulhos e demorou uma semana para encontrar um teto. Seu nome, Fogaça. Amou Marlene, que lhe deu pousada. Está voltando para os braços da amada, cabeleireira. Ele pretende levar Marlene para o oeste. Não gosta da cidade, do povo. Não gosta do clima, das ondas de calor. Só pensa em voltar para casa. Esta noite não vai tomar banho. O chuveiro elétrico queimou. Por isso, não se move mais rápido. Controla a temperatura do corpo. Se suar, fede. Se feder, Marlene não se atreverá a amá-lo esta noite. Chegou na estação, rompeu a borboleta e esperou. Já era tarde. Na estação, ninguém. Depois de um tempo, chegaram outras pessoas, três. Fogaça deduziu, em silêncio. "Lá vem os malas". Pediram fogo. Fogaça disse que não fumava. Perguntaram as horas, Fogaça não tinha relógio. Perderam a paciência. Fogaça perdeu a vida. Vida de operário é assim. Vive para trabalhar, trabalha para viver. Quando se vê numa encruzilhada, morre. A viúva, de desgosto, muda-se para o oeste, para onde o finado pretendia levá-la. Lá descobre que a vida não vale mais a pena e se atira no rio. Não sabia nadar. Só sabia amar. E cortar cabelos.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Reencontro de colegas de faculdade

Sábado. Todos estarão lá. Dez anos de distância. Geográfica e ideológica. Radialistas, produtores de televisão, bancários, assessores de imprensa, vendedores, mães. Cada um seguiu seu caminho depois de receber o canudo do curso de Comunicação Social, habilitação em Rádio e TV. Soube que um acertou na mega-sena acumulada. Dez, vinte milhões, não sei. O certo é que ele vai aparecer na melhor beca, no melhor carro, na melhor acompanhante que se pode levar por duas milhas. Estou aqui traçando linhas tentando descrever lembranças, porém acho que o melhor é faltar. Não estou afim de levar um tiro na cara de um sujeito complexado que reaparece nesses tipos de encontro para se vingar. Não que eu tenha dado motivos para nenhum daqueles bacharéis. Não que eu tenha motivos para dar cabo de alguns daqueles bacharéis. Nem deveria ter escrito isso aqui, pois a chance de ser usado por meus inimigos é grande. Meu nome é Paulo. Paulo Verdade. O maior contador de mentiras que um jornal pode comprar.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

O descontrole das massas

Eles viviam em guerra
Num mundo coberto
De cinzas
Velavam seus mortos
Por sete dias
E jejuavam
Oravam
Criticavam
Conforme a lei
Separados por diferenças
Tornaram-se iguais
No ódio.

terça-feira, 22 de julho de 2008

O ninja da Izabel Bueno

Em frente aos prédios em reforma dos Correios na Izabel Bueno tem um ninja. Já o vi como estátua. Duas vezes. Negro, barbudo, um pouco acima do peso. Mas o que me chamou atenção hoje foi a máscara de ninja que ele usava. Sempre apegado a uns galhos secos que, se bem me lembro, eram um arbusto. Já o imaginei transformando-se no próprio arbusto. Ainda não o vi em movimento. Parece que está sempre meditando. De pé, com uns galhos secos nas mãos. De perfil, foi como o vi hoje. Estava lá o ninja negro da Izabel Bueno. A máscara é tão negra quanto a pele dele. Ainda achei que um dia desses o viria reluzente, como aquela estátua de bronze do poeta lá no centro. Não sei ao certo se é de bronze, mas parece. O ninja mascarado, não. Quando não usa o adereço, sim. Pois a pele parece o bronze. Acho que não fala. Poderia descer qualquer dia lá para trocar umas palavras com ele, mas a passagem do ônibus é tão cara que não posso me dar ao luxo de perder um bilhete. Escrevo estas mal traçadas linhas do bairro Dona Clara, mas naquela altura da Izabel Bueno não sei que bairro é. Desconfio que seja o Universitário, pois fica próximo do campus da Unifenas.

domingo, 20 de julho de 2008

O cego

Ele viu
Com tato,
Olfato
E paladar.

O retorno de um passeio perdido

A tentativa de tomar o caminho mais curto me fez perder o norte e desci mais ao sul possível de uma trajetória em pleno centro de Belo Horizonte. As ladeiras atulhadas de carros, calçadas em pleno frenesi de inverno, com pessoas muito vestidas - não digo bem, nem mal - tornam o passeio difícil. Encontro, encontrão, sem vontade de assim fazê-lo. Não quero encontrar ninguém conhecido, apenas desconhecidos. Sem palavras a pronunciar. Sem justificativas a dar. Só o prazer de caminhar no sentido escolhido, o de não sentir. Olhar e não ver. Andar e não fatigar. Apenas vislumbrar o movimento do corpo em suas várias funções. Não perco o caminho de vista quando me concentro, mas quando me deixo levar me perco e não sei mais voltar. Porque não balbucio palavras a terceiros, prefiro o diálogo interno em que faço apartes quando bem os quero. Retorno ao início desta mensagem e tomo o caminho oposto, descendo até a estação do metrô. A viagem será longa no espaço e curta no tempo.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Fugindo da Sombra

Dias frios para se fugir das sombras. Sombras geladas que me faz repensar os motivos pelos quais me levaram a sair de casa. Trabalho, ou diversão. Só isso me faz sair de casa. Com este frio de Belo Horizonte, primeiro inverno residindo na capital mineira, meu esporte preferido tem sido dormir agasalhado debaixo de duas cobertas. A brisa da manhã espanca a face sem cerimônia. Lábios rachados, pele ressecada. Depois minha mulher me aluga dizendo que não estou cuidando da minha pele. E ficar sem beijar não pode.

domingo, 6 de julho de 2008

Vento

Nos olhos um véu
Abrir-fechar de cortinas
Movimento seco

De olhos fechados no trem

Contagem regressiva para mais uma viagem. 25 minutos, no máximo. 20, no mínimo. Trem vazio. Tempo frio. Olhos fechados para o mundo, pois é noite. O barulho dos trilhos não é sinfonia, nem poesia, apenas barulho. Solavanco sonoro que tento guardar de memória. Olhos fechados ainda, fone no ouvido. Vai ser difícil acertar a estação. Do rádio, não! Do trem. Se eu passar da minha, é capaz de não voltar. Não conheço nada além da minha. Só pros lados da Eldorado. Tinha dia que o trem parava no trilho na altura do Minas Shopping. Era um breu só. Perdia a conta. Abria os olhos e prosseguia o jogo para não perder o caminho.