sábado, 30 de outubro de 2010

"Clóvis, aonde estão os óculos?
Clóvis, aonde estão os óculos?
Quem mandou você bulir aí?"
(SUA MÃE)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Morto por uma bola de papel

A cena foi rápida. No meio da multidão, o político acenava para os comparsas que o cercavam. Um círculo dentro da massa. A massa era contrária à presença do político. De repente, no ar, uma mancha branca lançada entra no círculo. O político leva uma das mãos à cabeça. A câmera focaliza a cabeça. A mão do político não se mexe. Permanece sobre a cabeça. O círculo se movimenta no meio da massa tentando chegar até uma loja. O dono da loja, vendo o político e sua comitiva tentando entrar em seu estabelecimento, junta os funcionários e forma um cordão. "Aqui, não! Já para fora!" Escorraçado, o político e seus comparsas se movimentam até a próxima loja aberta. Novamente, a entrada é negada. "Estou morto." E estava mesmo. A campanha do político acabara ali. Não, para ser preciso, não foi ali. A campanha dele acabou no hospital. Após uma bateria de exames, o veredito: "O objeto que atingiu a cabeça do paciente causou vários problemas." Antes que terminasse de falar, o médico foi questionado. "Quais problemas?" Revisando as anotações que fizera, o médico definiu um problema: "Morte eleitoral." Semana que vem é o velório do político.

domingo, 17 de outubro de 2010

Ponto morto na calçada

- Amor, você tem certeza que estacionou direito? O carro tá meio torto.
- Mulher, o que você entende de estacionar?
- Eu só estou falando que o carro está meio torto.
- Tá, tá, tá! Quando você descer, ele desentorta.
- Olha, Miguel, a próxima vez que me chamar de gorda...
- O que você vai fazer? Entrar numa academia?
Ao descer, a mulher, ainda magoada com o comentário do marido, pisou num degrau desconhecido. Ainda reclamou:
- Mas que rua esburacada!
- Viu! Não disse que a culpa não era minha? É da rua, mulher!
Eles juntaram os meninos e caminharam até a igreja, onde já começara o casamento. O menino mais curioso, o menor deles, olhando para trás, puxou o vestido da mãe. Queria dizer-lhe alguma coisa, mas a mãe, preocupada com a cerimônia, não lhe deu atenção. O menino, durante o casamento, ficou com aquela imagem na cabeça: um corpo na calçada, debaixo do carro do pai. A mãe, possivelmente, ao descer do carro pisara na cabeça do morto, o tal "degrau", o tal "buraco".

"O corte", de Costa-Gravas

Acabei de assistir ao filme "O corte", do diretor Costa-Gravas. Ao contrário das ações que retrato de um matados há alguns meses, a personagem principal do filme, um engenheiro desempregado da indústria do papel, resolve assassinar possíveis concorrentes. Para isso, aluga uma caixa postal e faz uma anúncio falso de seleção de engenheiros para a área em que trabalha. Com isso pretende analisar o melhores currículos e "sumir" com os engenheiros. Humor negro? Talvez, mas parece mais uma crítica ao capitalismo que joga com as vidas das pessoas. Ao contrário do matador de Encontros Marginais, o assassino de "O corte" apresenta motivos capitalistas para matar. Ao longo do filme, a publicidade em cartazes e em propagandas móveis são substituídas por imagens de mulheres semi-nuas, jóias e outros artigos de luxo. Mais uma crítica ao capitalismo, pois essas imagens sempre aparecem quando o assassino precisa se justificar.

sábado, 9 de outubro de 2010

O pregador de mentiras

O homem estava cansado e sedento. Trabalhara durante o sábado nas obras do condomínio residencial no alto da montanha. Descera, agora, no fim da tarde, voltando para casa. Caminhando pelo centro da cidade, vislumbrou o palácio religioso. Ostentando uma fachada luxuosa, a igreja possuía dezenas de portas e centenas de janelas. O homem resolveu entrar no estabelecimento comercial. "Quem sabe tem um bebedouro." Subiu os degraus e foi recebido por um homem-armário. Pegou um jornal com as orações do dia e os classificados abençoados. Escolheu um lugar para sentar e aguardou. A próxima sessão de descarrego começaria dentro de vinte minutos. Buscou com os olhos uma placa que informasse a localização do bebedouro. Não localizou nenhuma. Resolveu se aproximar de um fiel. Começou, então, um diálogo digno de pessoas humildes. "Esse lugar é muito bonito." A figura de quem se aproximou respondeu sem muito interesse. "É verdade. Muito bonito." Vendo que a conversa não tinha futuro, foi logo para a questão que o perseguia desde que estava na rua. "Hum, sabe, antes de começar a apresentação..." O outro arregalou os olhos para ele. Pensou rapidamente no que dissera. Precisava entender a surpresa. Entendeu logo o que havia surpreendido o fiel. "Digo, o culto, sabe? Antes de começar, acho que vou beber um pouco de água. Você sabe onde fica o bebedouro?" O fiel desfez a cara de surpresa, baixou os olhos para o folheto das orações e indicou a direção. "Que bom. Eu já estava seco. Meus lábios estavam pregados de tanta sede", pensou o homem. Levantou-se e caminhou até o bebedouro. Chegando lá encontrou outro homem-armário. Imaginou. "Esses caras se vestem como seguranças. Acho que vou beber água e cair fora daqui." Sorveu o jato de água que saia do equipamento. Estava bem gelada. Quando começou a se aproximar da porta de saída encontrou outro homem-armário. Aquilo o intimidou e o fez mudar de ideia. Ficaria para ver a apresentação, digo, o culto. Sentou-se próximo da porta de saída e fechou os olhos. Era preciso descansar. Afinal, levantou muitas paredes naquele sábado. De repente, quando abriu os olhos, percebeu que não era mais uma das poucos testemunhas ali. Estava cercado de fiéis. Homens, mulheres, crianças, velhos, velhas e homens-armário. No púlpito, uma figura de terno iniciava sua apresentação, ou culto, seja lá o que fosse aquilo. As pessoas vibravam com as palavras daquele sujeito. O homem começou a olhar as pessoas que o cercavam. Algumas estavam realmente muito emocionadas, outras pareciam estar em transe. Aquilo começou a assustá-lo. O sujeito do púlpito interrompeu o show-culto. Começou, então, a suplicar doações em dinheiro. O homem, liso como todo trabalhador honesto, entendeu que já estava na hora de sair dali. Tentou levantar, mas foi impedido pelas pessoas que o ladeavam. Como dizia, elas estavam em transe e ele temou acordar os sonâmbulos. Incrível, alguns pareciam zumbis. Dormiam de olhos abertos e gritavam. Seu coração começou a bater mais rápido. Foi então que aquele homem do palco gritou e apontou o dedo em sua direção. "Basta!", gritou. Todos interromperam a catarse coletiva. Ele levantou-se e perguntou: - Quem, aqui, tem dinheiro para usar ternos tão caros como esses homens da igreja? Ninguém respondeu. Perguntou novamente: - Que, aqui, tem dinheiro suficiente para comprar um carro ou uma casa como esses homes da igreja? Ninguém respondeu. Antes que emitisse uma nova pergunta, o homem foi cercado pelos homens-armário e o sujeito lá do palcou gritou. "Irmãos, esse homem está com o diabo no corpo!" E todos gritaram em direção a ele. Aconteceria um linchamento, pensou o homem. "Esse povo vai me linchar." Os homens-armário o pegaram pelos braços e o levaram ao palco. O sujeito com o microfone começou a gritar. "Sai desse corpo que não te pertence. Sai capeta!" O homem entrou na jogada, afinal precisava se safar daquela situação. Começou a dançar. O sujeito do microfone pegou em sua cabeça e mandou mais uma vez. "Sai desse corpo, capeta!". O homem caiu no chão, ajoelhado. Depois deitou-se no chão. Levantou. Os fiéis aplaudiram. O sujeito do microfone começou a sambar no palco. Os homens-armário o levaram para trás do palco. O homem recebeu uma nota de cinquenta reais. Por fim, ele perguntou: - Se vocês precisarem novamente dos meus serviços, estou a disposição. Uma mulher de saia longa e cabelos amarrados aproximou-se dele e sussurrou em seu ouvido. "Nunca mais apareça aqui." Ele olhou para ela e para os homens-armário que a acompanhavam com um misto de surpresa e terror. Saiu do palácio religioso pela porta dos fundos e nunca mais foi visto naquele templo, naquela obra, nem em sua casa.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Os homens limpavam paredes

Garis verticais, eles limpavam paredes. Varriam os tijolos com auxílio de água. Limpavam a vista dos transeuntes dos cartazes da política passada. Erguiam escadas e começavam o serviço, calados. Em troca de dinheiro, limpavam a sujeira dos outros, que os outros fizeram. "Pelo menos não limpo latrinas, sabe?, de fezes." Começavam cedo e terminavam tarde. Trabalho temporário. Depois da empreitada, olho da rua. "Melhor que nada." Quando lhes disse que fazia campanha contra a sujeira dos políticos, me olharam torto. "Ainda bem que o senhor não é bem sucedido." Perguntados se votavam, respondiam calados. Se questionados novamente, diziam em tom divino. "Pra quê?" Os homens limpavam paredes e outros homens erguiam paredes, divisórias entre o mundo real e o eleitoral.

Ontem eu abri os olhos

Parado na estação do metrô, recostado no banco de pouco uso, abri os olhos para enxergar as horas. Luz fraca, sem programa agendado, o relógio estava com os ponteiros parados, estagnados. Uma vontade de não fazer nada. Um trem atrás do outro e a posição, a mesma. De repente, soou uma sirene. As luzes se apagaram, para sempre.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Nota breve sobre a greve

Morreu nesta sexta-feira, dia 1º, em greve de fome, o trabalhador que pedia o fim da corrupção e da desigualdade social. Ele tinha 33 anos e pesava no final de sua vida 33 quilos. Ele foi cremado e jogado do alto da Serra do Curral. Não deixou esposa, nem filhos.