segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O coveiro sem pás

Olha. Não sei por onde começar. Imagino que o trabalho não seja difícil. Imagino que seja rápido. Afinal, é só enterrar! Então, mãos à obra. Vou sentar aqui na sombra desta árvore e esperar o que vai dar. Não falo dos frutos. Falo do trabalho. Falo de enterrar. Não morre gente nesse lugar desde a última enchente. Aquela foi violenta. Levou gente para muito longe. O último coveiro, que se aposentou e me passou o bastão, disse que passou um mês inteiro enterrando gente. Agora, que sou eu o coveiro, aguardo o período de ação. É muito chato conviver com essas almas mortas aqui. Outro dia, resolvi jogar paciência sobre um túmulo e o administrador do cemitério me deu uma advertência. "A segunda é rua!" Ainda bem. Imaginei ele dizendo: "A segunda é cova!" Mas foi só um sonho. Desde esse dia, da advertência, eu venho para os fundos do cemitério e me enterro debaixo da sombra desta árvore. Fico aqui até bater o cartão. "Coveiro! Ó, coveiro! Cadê você?" Será que é um morto-vivo? Não é possível! Tem a voz do administrador. Será que é parente dele? "Coveiro, arrume agora um lugar. Pode ser aí debaixo dessa árvore. Temos um trabalho a fazer e pelo que vi os familiares não têm muito dinheiro. Abra uma cova aí." E como faço para abrir uma cova? Eu jurava que essa pergunta era só um pensamento meu, mas acho que pensei alto demais. "Como? O coveiro é você! Não sabe abrir uma cova? Agora, eu tô lascado! Administro um cemitério onde o coveiro não sabe abrir uma cova! Será possível?" Não, não. O senhor não entendeu. Como eu poderia explicar aquela minha pergunta? Bem, de um modo ou de outro, eu tenho que sair dessa. Bem, senhor, é que está faltando... "Faltando o quê?" ... está faltando... dez minutos para o meu almoço. Eu sei, essa desculpa não foi das melhores. "Adie o seu almoço. Temos trabalho agora. A família está esperando lá na entrada e o morto está no caixão." Ele que espere! Tá morto, não tá? Não se preocupe, dessa vez, eu mantive a piada nos meus pensamentos. E agora? O velho coveiro não me passou o serviço direito. Nem por um treinamento eu passei. Ele insistia que não era preciso. "Não morre gente nessa cidade há mais de dez anos. O povo vai embora atrás de emprego e não volta mais. Mas, na última enchente..." Eu sempre o interrompia nesse ponto, pois já conhecia a história de trás para frente. O velho coveiro bebia no bar de meu pai e no final da noite, quando ajudava meu pai a limpar o lugar e fechar as portas, lá estava o velho coveiro a contar pela milésima vez a história da última enchente, quando ele, sozinho, passou um mês inteiro enterrando gente. "Foram tantas que perdi a conta! Ah, pra mais de mil, com certeza!" Bem, o administrador estava ali na minha frente agora e o morto no caixão, lá na entrada do cemitério. "É o seguinte, coveiro. Eu sei que você é jovem e não tem experiência no assunto, afinal, não enterramos gente aqui há mais de dez anos. Dessa maneira, eu vou convocar um funcionário da prefeitura para te ajudar. Vá buscar duas pás na sede." E lá vou eu, acompanhado do administrador, até a sede do cemitério. Ele segue sozinho até a entrada do cemitério e eu sigo para galpão que fica atrás da sede. Olha, se eu fosse um funcionário exemplar, isso não aconteceria do jeito que vou dizer para você. Para minha surpresa, o galpão está limpo. E quando digo limpo não é de limpeza, de higiene. Ele está limpo, vazio, entende? Não tem um só alfinete dentro dele. Se bem que isso aqui não é uma alfaiataria, para ter alfinete. A questão é que não tem nada. Nem pá, nem qualquer outra coisa relacionada ao serviço que coube. Como eu vou dizer isso para o administrador? Melhor mostrar, né? É isso. Vou esperar ele voltar e aí eu mostro para ele como o galpão está e lhe apresento uma requisição para compra de pás e de outros instrumentos de trabalho de modo que eu execute minha tarefa e cumpra o serviço que me dirigido. Assim mesmo, com todas essas palavras. Ele vai se surpreender com o meu vocabulário e, quem sabe, me dê um aumento. Tudo bem, eu sei, é cedo para um aumento. "Então, já providenciou as pás? Trouxe aqui o rapaz que vai lhe ajudar no serviço. Já pegou as medidas do caixão? Não vá cavar de menos! Não queremos um defunto com os pés para fora da cova!" Depois dessa última frase, ele riu tanto que o rapaz da prefeitura olhou para mim muito surpreso. Afinal o que queria dizer o administrador? Que enterraríamos o defunto fora caixão e suas pernas ficariam para fora da cova? O senhor não vai acreditar no que vou lhe dizer. Não, melhor, prefiro não dizer. Vou lhe mostrar. E o levei até o galpão. "Coveiro, o que é isso? Onde estão os seus instrumentos de trabalho? Como vamos enterrar o defunto?" Foram tantas interrogações numa fração de segundos, que eu preferi não entrar na questão de minha falta de comprometimento com o trabalho, que bem poderia ter verificado isso um mês atrás, quando comecei a ser coveiro. Bem, não tive curiosidade em saber que instrumentos eu teria que usar e onde eles estariam localizados. Mas enfatizei que ao tomar posse no emprego não me foi passado nenhum treinamento, apesar de eu ter pedido ao velho coveiro instruções sobre o trabalho. "Não interessa! É o seu trabalho! Você devia ter falado comigo antes! E agora? O que faremos?" Ao final dessas novas exclamações e interrogações, o rapaz da prefeitura falou que tinha algumas pás no serviço dele. Foi o que eu precisava ouvir. É o seguinte, senhor administrador, eu peço demissão. "Mas você não pode? O rapaz aí tem algumas pás! Vocês dois podem fazer o serviço enquanto eu converso com o morto, digo, com os familiares do morto!" Não, obrigado. Eu não estou satisfeito com as condições de trabalho e, afinal, o salário é muito baixo. É, essa vida de coveiro sem pás é muito difícil.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Últimas notícias sobre o matador

Ele foi visto caminhando pelo centro de Belém. Protegia-se da chuva da tarde sob algumas mangueiras. Alguns frutos no chão denunciavam o risco que corria, caso não procurasse outro lugar para se proteger da água. Caminhou lentamente, saltando um linha d'água entre a pista e a calçada, em direção a uma farmácia. O matador não está de férias. Ele visita a cidade a trabalho. Espera encontrar o assassino de seu filho, o qual enterrou em Belo Horizonte no final do ano passado. Seguiu a pista ainda na região de Venda Nova, após "interrogar" alguns suspeitos do crime. O matador conhece outro matador. Bastaram algumas indicações e caiu na estrada. Viajou até Brasília de ônibus, mas, impaciente, optou tomar um meio de transporte mais rápido. Pegou um avião em direção a Belém no começo do mês de janeiro e sentiu um bafo quente assim de desembarcou no Aeroporto Val de Cans. Era o bafo da morte. Caminhara pela Cidade Velha em busca do assassino de seu filho. Chegou a vê-lo no Ver-o-Peso, mas o furdunço no local não lhe permitiu alcançá-lo. Ainda está procurando, à espreita, esperando um vacilo do marginal.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Estante Virtual: livro Banco de Talentos 2009

Seguindo o exemplo do Joca Reiners Terron, que às vezes pesquisa seus livros em sebos, fui buscar no site Estante Virtual algum exemplar do livro Banco de Talentos 2009, da Febraban, e achei esse aqui. Está sendo vendido por R$ 15,00 no Sebo Linha Paulista. Na página 74 você localiza "Encontros Marginais", uma série de microcontos sobre um matador, alguns publicados neste blogue sob a "tag" Encontros Marginais.
No livro constam também os agradecimentos aos "colaboradores marginais" Claudio Ferreira Sobrinho e Thiago Fujimaki, que me provocavam a escrever mais alguns crimes para o matador. Sugeriam vítimas e "modus operandi". O cenário é Belo Horizonte, onde nós três nos esbarramos profissionalmente. Hoje, um deles está no Rio de Janeiro e o outro em Brasília. O terceiro, eu, tento sair daquela selva de pedras chamada BH e retornar ao Pará, onde passo férias atualmente.
Como não estou escrevendo diariamente neste blogue, peço licença ao leitor para informar o meu endereço no Twitter: http://twitter.com/77pontos

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Smartphone, Stupid People

No ônibus, pela manhã.

- Abreu, ainda não arrumei a mulher para limpar a casa. Não. Não tem problema. A vizinha disse que, se eu não encontrar alguém, ela faz o serviço. Não, não, não. Não precisa pagar nada. Ela me deve um favor, mas está muito ocupada agora. Depois, se eu não encontrar uma faxineira, ela pode fazer. Agora, não. Você não tá entendendo?

Na lanchonete, ao meio-dia.

- Oi, mô. Sim. Eu tô com saudade. Também te amo. Sim, eu passei a manhã pensando em você. Você me liga depois? O quê? Eu tô comendo agora. No shopping, mô. O quê? Porque eu tô sem crédito. Por que acabou? Mô, a Jéssica tá muito mal. Eu passei a madrugada falando com ela. Sim, eu sei, mô. Se ela tava mal, que me ligasse. Eu sei. Mas a mãe dela cortou o telefone, internet e tirou ela do colégio. Não. Ela vai pra um colégio público. Você acredita? Só porque ela foi reprovada em seis matérias!

No trânsito, no meio da tarde.

- Não. Eu não tô dirigindo. Pode falar. Eu anoto. Passa por cima! Não. Era um cara que tava querendo passar por mim. Não. Eu não tô dirigindo. Então, fala aí, que eu anoto. Filho da puta, fecha a mãe e vende num leilão! Amor, eu não tô dirigindo! Juro! Era um cara fechando o elevador quando eu já tava entrando. No serviço não tem elevador? Não, eu não tô no serviço. Puta que pariu! O que foi agora?!?! É que eu lembrei só agora que tinha que pagar aquela conta hoje e o banco já fechou.

No ponto de ônibus, à noite.

- Olha, sua vaca, se você deixar o meu filho no meu apartamento antes que eu chegue lá, eu te mato! Mato você e aquele vagabundo que tá saindo com você! O quê? Ele trabalha!? Agora vai jogar isso na minha cara! Eu tô morando com a minha mãe, mas o apartamento é meu! O meu pai deixou pra mim. Metade dele é meu! Você não tá me ouvindo? Metade do apartamento é mais dinheiro do que o seu namoradinho poderia juntar em 20 anos de trabalho. Ele tem apartamento? E carro também? Quitado? Você é interesseira pra caramba! Por isso eu te larguei, vagabunda! Ah, tá! Você que me largou? Quando? Quando você me pegou com a faxineira? Ela não era faxineira, maluca! Ela me devia um favor e foi limpar o meu quarto.